A gripe

831 74 13
                                    

O dia hoje está cinza. Acho que vai chover. São seis e meia da manhã e eu pedalo sem pressa para mais um terrível dia de aula. A cidade acorda basicamente ao mesmo tempo, posso ver as pessoas deixando suas casas para ir ao trabalho, caminhadas, passeios ou apenas para ver o sol, que hoje parece tímido.

Aqui em Santa Amelia raramente alguma coisa interessante acontece. Todos os dias as mesmas coisas acontecem, vemos as mesmas pessoas, vamos para os lugares de sempre e é isso. Uma cidadezinha pequena e pacata que nunca acontece nada.

Um vento frio varre as folhas secas na calçada da rua dos Cravos. As casas muito bem arquitetadas parecem uniformes, é como se todos fossem até o mesmo arquiteto e pedisse para desenhar o modelo da casa do vizinho, particularmente essa falta de identidade me incomoda. Mas a natureza aqui é realmente bela. Talvez o mais interessante deste lugar. Temos rios, cachoeiras, florestas, lagos, todas essas coisas que todo mundo gosta bem próximo da cidade.

Esta é nossa cidade, um lugarzinho perdido visualmente bonito, mas sem muito a oferecer.

***************

Os corredores do colégio estão movimentados, os alunos andam de um lado ao outro em seus grupinhos, despreocupados, sorridentes. Temos todo tipo de pessoa aqui, os nerds, os rebeldes, os que se acham rebeldes, os garotos populares, as garotas populares, os inteligentes, os nem tanto inteligentes e bem... Eu.

Não sei me encaixo perfeitamente nesses grupos. Converso normalmente com qualquer e não tenho muitos problemas com ninguém, mas também não sei como fazer parte. Fui diagnosticado com transtorno de personalidade esquizoide a alguns anos, isso quer dizer que basicamente eu gosto de ficar sempre sozinho, as pessoas de certa forma me incomodam e eu não sei criar laços com elas. O tratamento me ajudou bastante, depois das terapias me sinto mais sociável, aprendi a lidar, mas não é como se eu precisasse.

Por muito tempo eu fui atormentado pelos garotos que me achavam "estranho", mas depois que meus pais conversaram com o colégio sobre o assunto e uma reunião foi feita com os pais e alunos eles me deixaram em paz. Não converso muito e não tenho muitos amigos, me sinto bem assim. Não pense que minha vida é triste, pois não é. Isso é uma coisa interessante sobre pessoas como eu, nós não precisamos dos outros para nos sentir bem, tudo é perfeito com apenas a própria companhia e um passa tempo como livros ou filmes.

Néd esta vindo na minha direção, ele é um cara legal, mas eu realmente não quero conversar. Um sorriso se abre no seu rosto quando ele passa o braço ao redor dos meus ombros.

- Bom dia Derek. - Néd diz sorridente como sempre. Ele é o tipo de pessoa que nunca fica triste e tem uma personalidade maravilhosa, além de ser fisicamente sinônimo de perfeição. Houve uma época que eu tive uma quedinha por ele, mas não soube lidar com isso e acabou passando.

- Bom dia. - Tento fingir animo.

- Como foi seu fim de semana prolongado?

- Foi legal. - Respondo enquanto andamos juntos pelo corredor. - Consegui pôr minhas series em dias.

- Por que não foi a festa do lago?

- Você sabe que eu não gosto muito de festas.

- Devia tentar.

- Da próxima eu penso no caso.

Ele decide não insistir. Rian está vindo carrancudo em nossa direção. Ele sempre está de mal humor. O grandão anda a passos pesados e esbarra em Néd propositalmente. Vejo o rosto do meu... Amigo sorridente se fechar instantaneamente. Rian tinha esse poder sobre qualquer um. Ele simplesmente gostava de confusão e era talvez o único que conseguia tirar Néd do sério.

Néd se vira para Rian e vocifera um palavrão. Rian para de andar e volta-se para ele como se fosse um animal raivoso.

- Vai fazer o que Néd? - Ele provoca da melhor forma "eu acabo com você" que consegue.

- Vou estou a porra da sua cara... - Néd se prepara para desferir seu primeiro soco quando uma terceira pessoa entra em ação.

- Néd não cai nessa. - Lara aparece repentinamente e fala com tranquilidade.

Néd geralmente não é violento, mas por algum motivo que ninguém sabe, com Rian as coisas são diferentes. Rian também passa bem longe de ser uma pessoa legal, ele é o exemplo de gente que agente quer ficar distante.

Néd respira fundo e sai sem dizer nada. Há um sorriso no rosto de Rian.

- Qual é o seu problema Rian? - Lara pergunta para ele que a olha com certo ar de desprezo.

- Cuida da sua vida garota. - Ele di ríspido.

Rian se prepara para sair, mas antes ele olha em minha direção, eu sei que não estou esboçando nenhuma emoção agora, as vezes é como se eu não sentisse muita coisa. Não sinto raiva dele por ser o idiota que é, não sinto empatia por Néd pelo estado irritado que saiu daqui. Quando sinto alguma coisa, minhas expressões geralmente me traem, meu rosto raramente expõe meus sentimentos, é como se eu estivesse congelado por dentro.

Os olhos dele se demoram pouquíssimos segundo em mim até que ele da as costas e desaparece entre os alunos que observam a confusão ao nosso redor.

- Sinto muito por isso. - Lara diz se aproximando. - Sei que você não lida muito bem com essas coisas...

- Eu estou bem. - Forço um sorriso.

- Ok.

Continuo meu caminho em direção a minha sala de aula.

- Derek. - Ouço o professor de educação física me chamar a atenção. Olho para ele, que veste roupas esportivas. - Eu gostaria de falar com você depois das aulas, certo?

Assinto. Eu sei exatamente sobre o que ele quer conversar, tem haver com minha indisposição a praticar esportes.

Continuo meu caminho, faltam poucos minutos para que a aula de matemática comece e minha empolgação é mínima. Vou observando os alunos interagido. É tão fácil para eles. Penso que talvez se eu fosse um pouco normal, as coisas seriam melhores.

Vejo Néd entrando na sala mais afrente ainda irritado. Néd é um cara incrível. Ele tem cabelos castanhos e curtos, deve ter por volta de um metro e oitenta e uma barba que surgiu no ano passado deixando-o com um ar mais maduro.

Lara seguiu para sala dela. Ela também é uma moça bonita, de cabelos cortados acima dos ombros, pele negra e um sorriso encantador, ela sempre está disposta a ajudar. Foi eleita presidente do grêmio estudantil no começo do ano e está fazendo um ótimo trabalho.

Rian por sua vez, continua o idiota que sempre foi. Ele tem seus amigos de personalidade tão ou mais ruim quanto a dele. Rian é aquele cara bonito que todo mundo deseja ter por uma noite, mas que talvez não por uma vida. Ele tem os cabelos loiros curtos, olhos claros e seus um metro e noventa com alguns músculos moldando um corpo visivelmente perfeito. As garotas suspiram quando ele passa pelos corredores e imagino quem fazem muito mais do que apenas suspirar no fim das festas que acontecem na casa dele semanalmente. Rian é o "pegador" do colégio, com toda uma lista de garotas com quem já ficou, uma lista grande que vai desde as alunas a, dizem as más línguas, algumas professoras, mulheres casadas da cidade e sabe lá quem mais.

Vejo também um casal um pouco diferente do comum. Erick e Alisha estão em um beijo quente na porta da minha sala. Eles sempre estão vestidos de preto e geralmente não dão muita moral pra nós. Tem seus próprios amigos, a maioria não estuda aqui e são mais velhos. Nunca conversei com nenhum dos dois, eu geralmente só converso com quem me chama pra conversar e isso acontece com eles então, nunca aconteceu.

Passo por eles meio constrangido e eles parecem não me ver, mas parecem não ver mais ninguém. Entro na sala e me sento próximo a janela.

que comecem as aulas.

************

As ultimas duas horas passaram arrastadas, estou sonolento. Tomo meu suco de laranja enquanto observo meus colegas sentados ao meu redor. Néd vem me obrigando a sentar com eles a mais de um ano e apesar de não fazer muita diferença eles até que são legais.

Na mesa estamos eu, Néd, Téo, Ana, Pedro, Lucas e Sarah.

- O hospital esta lotado. - Téo diz.

Eles estão falando sobre uma gripe que vem contaminando todo mundo a dois dias.

- Minha mãe falou que não precisamos nos preocupar. - Pedro diz com propriedade. - Parece que apenas as pessoas acima dos quarenta anos estão adoecendo.

- Por que somente acima dos quarenta? - Sarah parece incrédula.

- Não se sabe. - Ele responde. - Cada doença tem suas características, algumas só aparecem nas mulheres, outras somente em homens, outras em crianças, outras em pessoas com determinado tipo sanguíneo, esta é apenas aqueles com mais de quarenta. Não tem como saber, não ainda.

- Ouvi dizer que não há mais vaga no hospital. - Téo insiste no assunto do hospital.

- Meus pais estão doentes, mas disseram pra eu não me preocupar. - Ana diz pensativa. - É somente uma gripe afinal.

- Ninguém morreu disso. - Pedro retoma a vez. - Não acho que seja sério.

- E seus pais? - Néd me pergunta. - Eles estão bem?

- Estão tomando cuidado. - Respondo.

- Minha mãe ficou doente ontem, estou preocupado, mas é como Ana disse, é somente uma gripe.

Ouvimos o sinal do fim do intervalo e nos levantamos. Cada um toma seu caminho e voltamos para nossas salas.

**********************

Finalmente a ultima aula do dia, infelizmente é educação física e o Sr. Ristoff já deixou bem claro que eu não devo ir sem antes conversar com ele.

Estou sentado na arquibancada com o olhar perdido em um ponto fixo no chão, pensando em absolutamente nada. Uma das professoras pegou a gripe e não pode vir hoje, por isso tem outra turma fazendo parte da aula. Alguém chuta a bola com força e ela voa na minha direção e quase me acerta. Desperto imediatamente assustado com o objeto passando a centímetros do meu rosto.

Alguém grita um desculpa da quadra e minha atenção se volta para os jogadores de futebol. A bola quica enquanto desce pelos degraus da arquibancada. O Sr. Ristoff dividiu os times de forma que fosse uma turma contra a outra e os ânimos estavam um tanto alterados entre Rian e Néd, que vez ou outra trocavam farpas no meio da partida.

Somente agora percebi Rian ali. Ele está soado e ofegante, correndo de um lado ao outro com o rosto fechado, parece concentrado na partida, talvez por querer muito ganhar o jogo, para se sentir melhor do que Néd, que está no mesmo estado. Ambos são muito bonitos e devo confessar que isso mexe comigo, minimamente que seja.

Balanço a cabeça, não vou ficar aqui pensando em garotos não agora.

O professor apita e a um intervalo de cinco minutos. Os garotos correm para os banheiros e bebedores, menos Rian que está vindo em minha direção. Por que ele está vindo em minha direção.

Ele sobe os degraus da arquibancada com uma expressão cansada.

- Oi. - Ele fala assim que se aproxima o suficiente.

- Oi. - Respondo sem saber exatamente o que fazer e esperando uma ação idiota por parte dele.

- É... Só, desculpa por mais cedo, meu problema é com aquele tapado. - Ele se refere a Néd e eu até acho uma certa graça quando ele fala sobre o "inimigo mortal". - E não com você.

- Tudo bem. - Respondo sem muito humor.

Rian se senta.

- Agente não conversa muito. - Ele me olha, mas eu evito olhar pra ele. - Mas não precisa ter medo de mim, certo?

- Não tenho medo de você. - Digo simplesmente e é verdade.

- Que bom. - Ele sorri. - Eu não quero que pense que sou esse monstro que dizem que eu sou.

- Eu não costumo dar atenção ao que todo mundo fala. - Respondo . - Você é um idiota, isso eu sei, mas não acho que seja um monstro.

Ele fica sem resposta por alguns minutos, mas sorri.

- Tenho que ir. - Rian se levanta, não sem antes apertar meu ombro daquele jeito que os caras fazem para demonstrar confiança, ou conforto uns com os outros. - O jogo vai começar e eu quero ganhar do seu amigo.

Ele desce as escadas rapidamente e o jogo retorna normalmente. Agora eu estou mais atento a partida, posso ver que Rian vez ou outra olha na minha direção, não sei o que significa, mas não vou me preocupar. Néd continua concentrado.

****************

O Sr. Ristoff está no fim do seu breve discurso sobre participação nas aulas e notas que precisam ser melhoradas. Concordo com ele, estou sendo um péssimo aluno em suas aulas. Digo que vou me esforçar a partir de agora e ele parece feliz.

- Tudo bem, Você está liberado.

Saio da quadra sem pressa, passo pelos enormes portões de ferro que separam a quadra do resto da escola e adentro o corredor que continua cheio de alunos.

- Como foi a conversa? - Néd pergunta sem muita assim que eu o encontro.

- Foi boa, ele só pediu pra eu fazer parte do grupo de xadrez.

- Xadrez. - Néd ri.

- Qual é o problema?

- É que isso nem é um esporte.

Reviro os olhos e continuo meu caminho, Néd continua ao meu lado.

Estamos chegando na porta de saída quando percebemos uma aglomeração ali.

- O que está havendo? - Pergunto mais para mim mesmo.

- Deve ser alguma briga. - Néd diz.

Estão todos aparentemente horrorizado com sabe lá o que está acontecendo lá fora e isso aumenta a minha curiosidade, podemos ouvir gritos e os alunos repetem as mesmas perguntas: o que tá acontecendo? O que é isso? Por que estão fazendo isso?

Alguns deixam a aglomeração e correm dizendo que todos tem que voltar para dentro. Não entendo o que de tão grave pode ser para que tenhamos que voltar para dentro. O barulho persiste lá fora e eu tenho certeza que é algo grave o suficiente para termos medos.

Podemos ouvir os gritos, a agitação, carros, batidas de carros.

Fechem a porta alguém fala e todos saem do caminho depois de fechar a porta da escola. Eu ainda estou distante para ver alguma coisa, mas me aproximo enquanto alguns se refugiam nas salas de aula, outros tentam ligar para a policia, ouço alguém dizer que estão todos mortos. Seria sobre a gripe? Uma garota chorando diz que um cara matou alguém lá fora. Seria um atentado?

Algo se choca contra a porta. Todos se assustam, alguns correm outros apenas continuam lá, torcendo para que a porta seja forte, mas sabemos que não é o caso.

Outra batida e outra, e outra, e outra.

É possível ouvir o barulho da madeira estalando. A porta vai ceder.

- Corram! - Alguém grita.

Todos começam a correr.

Sinto alguém me segurar pelo pulso.

- Temos que ir. - Néd diz alarmado.

- O que está havendo?

- Não sei, mas não parece ser coisa boa.

Ele começa a me puxar indo em direção ao lado contrario da porta.

Ouvimos quando ela se abre e paramos de andar.

Não há silencio, não tem calmaria, apenas agitação e gritaria.

Uma multidão adentra a escola com pressa. É possível reconhecer aquelas pessoas, são os moradores que vivem nos arredores do colégio. Estão feridos, alguns, com cortes enormes no rosto. Posso ver alguém sem o nariz. Tem muito sangue. Roupas rasgadas, alguns estão nus. É impossível entender o que está havendo até que um deles voa sobre um dos alunos e lhe crava os dentes na bochecha arrancando um pedaço de carne do garoto.

Arregalo os olhos.

- Que merda é esta? - Néd está tão assustado quanto eu.

vários deles estão sobre o corpo no chão agora, estão literalmente comendo o garoto. A multidão apenas aumenta. Eles entram as pressas e em completa fria. Não param de vir. São muitos.

Outro aluno é atacado e depois outro, e outro. O que deu em todo mundo? Por que estão comendo as pessoas? O que está acontecendo?

Néd me puxa e começamos a correr. Ele aperta o meu pulso com firmeza. A multidão de alunos correndo pelos corredores só aumenta e posso ver alguém ser pisoteado. Os canibais percebem a movimentação e começam uma perseguição. Eles são rápidos, são loucos.

a multidão de alunos esta cada vez maior estamos seguindo o caminho que leva até a quadra. Por causa de todo o desespero as pessoas esbarram umas na outras alguns caem, precisamos andar vários metros até chegar na quadra. A maioria das portas estão fechadas por causa do fim da aula. O empurra faz com que a mão de Néd se desprenda do meu pulso. Eu acabo caindo, tento me levantar, mas não é tão simples quando tantos corpos se chocam contra você. penas me arrasto tentando encontrar a parede em meio a gritaria, não posso continuar no meio do caminho deles.

Os canibais gritam vindo ao nosso encalço. Acho que vou morrer, se não pisoteado, pelos monstros que estão chegando.

Estou chegando na parede quando no meio da corrida alguém chuta o meu rosto. Sinto a dor e meus olhos lacrimejam. Finalmente toco a parede, sendo mais preciso a porta do laboratório de biologia. Seguro na maçaneta para ter apoio e se levantar, mas a porta se abre quando forço.

Percebendo isso um garoto entra correndo na sala. Outras pessoas começam a entrar e então alguém finalmente segura meus braços e me tira do chão.

- Vamos. - Ela fala e me puxa pra dentro da sala fechando a porta assim que entramos.

Estamos seguros ali?

Mortal  Onde histórias criam vida. Descubra agora