A fera dentro de mim

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O sangue escorre pelo meu braço e cai no chão. Como pode esta mordida sangrar tanto?

De frente ao portão da cerca tento ganhar coragem para por umfim a tudo isso. Os canibais estão todos mortos no chão, amontoados e queimados. Morreram todos ali, mesmo com a dor eles não desistiram. Se mataram na tentativa de atravessar a serca. As barras de ferro estão entre mim e o amontoado de corpos, que comprovam a minha teoria de que se tocar nelas a morte é certa.

Respiro fundo, vou me suicidar. É o que me resta fazer. Vi o que aconteceu com Tara quando ela tentou abrir o portão... Será rapido.

Me aproximo e respiro de novo. Não é a coisa mais facil de se fazer.

Toco as barras quando a coragem finalmente chega. Espero pela dor, o impulso, a morte, mas nada acontece. Abro os olhos depois de alguns segundos com as mão grudadas no metal.

Olho para os corpos do outro lado da cerca. Toda a energia liberada neles sobrecarregou alguma coisa e a força acabou. Não tem mais nenhuma descarga eletrica. Que sorte a minha, não?

Atravesso as barras e devio dos corpos dando passos largos na direção da cidade. Se não vou morrer eletrocutado, morrerei pelas bombas.

Não existem mais canibais, estão todos mortos e isso me deixa ainda mais frustrado, é como se alguma coisa colaborasse para que eu não morresse. Como se fosse uma piada.

Algum tempo se passa até que eu chegue nas primeiras casas.

Há uma bicicleta amarela abandonada na frente de uma residencia. É pequena, mas eu não sou grande. Se vou morrer aqui, será na minha cama.

Pedalando pelas ruas penso em meus pais, como eles estão? Mortos? Trancados dentro de casa esperando por socorro? Ou pior, são canibais também?

Afasto meus pensamentos, isso não importa mais, estaremos mortos de qualquer jeito em pouco mais de uma hora.

A cidade não é tão grande e não demora muito até eu estar de frente a minha casa. Não vi muitos canibais pelas ruas, um ou outro, mas nada que complicasse as coisas. Abandono a bicicleta de qualquer jeito e entro pela porta já aberta.

- Mãe! - Grito. - Pai!

Não há resposta. Verifico a cozinha, o quintal nos fundos, o primeiro piso e nada. A casa está vazia.

Nas paredes da sala há porta retratos nossos. Meu pai, minha mãe e eu, em todas elas estou sorridente. Em uma delas estamos na praia ao por do sol, ainda lembro do barulho do oceano, a areia nos pés. Em outra a paisagem é branca, neve, lembro do frio, da lareira do hotel. Tudo parece tão distante agora, nossas viagens, nossa convivencia. Tudo se perdeu.

Enfurecido pela frustração acabo socando um dos quadros. O vidro se quebra com o impacto e o golpeio  novamente e de novo, e de novo... Paro ao sentir pequenos cacos cravados em meus dedos. - Que estupidez!

Eu queria que as coisas fossem diferentes.

Sinto-me estranho. A algo diferente.

Ouço algo atrás de mim e me viro rapidamente. Há um garoto na porta, seus olhos estão focados em mim. Não sou capaz de dizer se ele é ou não um canibal. Minha atenção se volta para o ferimento em seu ombro esquerdo, aonde uma uma mordida proxima ao pescoço derrama sangue, que mancha sua camisa azul.

Ele está infectado.

Me preparo para um possivel ataque, mas ele pisca algumas vezes e percebo vida em sua expressão assustada.

Ele parece perdido, vasculha o ambiente com o olhar tentando se localizar.

Sinto o cheiro dele.

Aquele garoto libera um aroma totalmente novo para mim. É bom e sem querer me pego imaginando sua carne entre meus dentes, seu sangue em minha boca, ele parece tão apetitoso.

Já começou. O virus está me tornando um canibal.

Olho para ele com um olhar dierente e ele devolve esse olhar para mim. É claro que ele também sente o meu cheiro.

Seus cabelos são castanhos claros e bagunçados. A pele é palida e ele é magro. Tem a minha altura. Olhos castanhos, roupas sujas. É jovem.
Mas nada disso importa agora.

De repente nossos olhos assustados não estão mais assustados. Ele se aproxima e as coisas ficam mais intensas.
Não me movo, mas sinto a fera querendo sair da jaula.

Me sinto embriagado pelo seu cheiro, como pode ser tão bom?

Comida.

Dou finalmente um passo afrente deixando a distancia entre nós menor. Suas mãos seguraram meus ombros com força, seus dedor apertam minha carne para que eu não fuja. Seguro seus braços com a mesma força, não quero deixa-lo sair, quero um pedaço dele.

Sua boca se aproxima do meu pescoço prota para a mordida ao mesmo tempo que a minha boca se aproxima do pescoço dele com dentes armados.

Quando sinto sua respiração quente sobre minha pele, acordo transe insano e percebo o que estou prestes a fazer. O empurro com toda força e me livro de seu aperto. Ele cai de bunda no chão e eu me encost na parede atrás de mim, tentando retomar o controle.

Sua consiencia parece retornar. Desliso minhas costas até ficar sentado no chão. Não posso mata-lo, mas quero tanto.

- O que está acontecendo comigo? - Ele pergunta com lagrimas nos olhos.

- É a infeção. - Digo. - Contraiu quando foi mordido. Você sente meu cheiro.

Ele arregala os olhos e sua expressão é confusa.

- Como sabe? - Pergunta com insegurança.

- Também posso sentir o seu. - Digo tentando me controlar para não machuca-lo. - Eu quero muito... Provar você.

Persebo seus olhos voltarem a se perder. Ele está tendo uma recaida.

- Lute contra isso. - Digo. - Só precisamos de mais alguns minutos. - Me lembro do bombardeio que vai acontecer logo, logo.

Ele se movimenta e engatinha vindo em minha direção. Seus olhos tem fome.

- Você é mais forte do que isso. - Tento.

Sinto minha boca salivar quando ele chega perto novamente.

Quero pular sobre ele agora mesmo. Quero morde-lo, mastiga-lo e mata-lo. Mas não vou fazer isso, vou morrer como um ser humano, não como um monstro.

Ele abre a boca quando chega bem perto do meu rosto. Já estou no meu limite, mais um segundo e vou arrancar-lhe um pedaço. Não suporto mais esta vontade, esse desejo de...

De repente o corpo dele cai mole sobre o meu colo e a surpresa me faz retomar o auto-controle.

Ele está inconsiente, vejo um dardo cravado em suas costas.

- Mas o que...?

Antes que eu possa terminar a pergunta sinto uma picada em meu pescoço. Levo minha mão até  objeto estranho e o arranco rapidamente da minha carne. O dardo é identico ao que está no garoto desacordado sobre mim.

O ambiente escurece tão rapido e tudo gira.

Perco a consiencia em questão de segundos.

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