Capítulo 6

855 70 7
                                    

— Até amanhã — disse Anahi a sua companheira de trabalho, ao se dirigir para a saída.
Que dia horrível! Apressou o passo para chegar em casa logo. Queria se comunicar com Manuel. Após horas de indecisão, concluíra que ele não poderia ter fingido tanto na noite da véspera. Com certeza já deixara um recado em seu apartamento.
Um oficial uniformizado apareceu à porta do hospital carregando um pequeno corpo enrolado em cobertor.
— Ele surgiu na frente de meu carro, correndo — o homem disse, com respiração ofegante. — Está sangrando muito e penso que quebrou uma perna.
Adrenalina e anos de treino entraram em ação, e Anahi gritou para uma atendente:
— Temos uma pequena vítima de atropelamento. Que sala está disponível?
— A de número três — a atendente respondeu. O oficial foi encaminhado para a sala mencionada.
— Alguém, por favor, chame o dr. Story — Anahi pediu e automaticamente apanhou as luvas de cirurgia.
Ela se compadeceu do oficial de polícia quando o homem se inclinou para colocar na mesa de exame o volume que carregava. A camisa dele estava manchada de sangue e o rosto com ar de grande preocupação. Anahi sentiu que algum elo a ligava àquele homem. Que elo seria aquele? Ah, claro, ela também salvava vidas.
— Sabe o nome da vítima? — perguntou.
— Não. — Alfonso afastou o cobertor. — Ele não usava coleira.
Anahi franziu a testa ao ver um corpo cabeludo.
— É um cachorro! — exclamou.
— Sim, madame.
Apesar das maneiras amáveis do policial, Anahi ficou furiosa. Tirou as luvas e disse:
— Tratamos pessoas aqui, senhor, não animais.
— Não pode fazer uma exceção?
— Absolutamente, não, com o grande risco de eu perder meu emprego. —
Ela foi até o corredor e gritou. — Cancele o chamado ao dr. Story. — E voltando para o policial: — Temos códigos da Saúde a manter. O senhor, melhor do que ninguém, devia saber disso.
— A senhora não poderia ao menos pôr um curativo no corte?
Anahi teve muita pena do pobre animal, mas cruzou os braços para não seguir seus instintos. Ela também tinha instintos e necessidades, como comer, pagar o aluguel do apartamento, o que se tornaria bem difícil caso fosse despedida. Mesmo depois de um ano ainda era considerada iniciante na medicina de emergência. O dr. Story a fiscalizava como um gavião sempre alerta. Uma violação flagrante igual àquela por certo significaria o fim de sua carreira no hospital da cidade, e uma mancha em sua ficha profissional.
Anahi engoliu em seco e disse:
— Sinto muito. Mas são regulamentos do hospital. A clínica veterinária na Sixteenth Street é bem próxima daqui.
A fúria do policial era quase palpável. Em vez de sair ele remexeu nas prateleiras de suprimentos, com suas enormes mãos tocando em tudo.
— O que está fazendo? — Anahi lhe perguntou.
— O que você deveria estar fazendo — ele respondeu, pegando um rolo de gaze e desenrolando uma boa porção.
Anahi abriu a boca para protestar, mas viu que seria uma futilidade brigar com um homem duas vezes seu tamanho e três vezes mais determinado. Porém percebeu que do jeito que ele envolvia a ferida do cachorro algo poderia... acontecer. Inesperadamente calor e admiração
encheram seu peito. O homem não sabia como fazer, mas agia. E ela não pôde deixar de admirar tanta dedicação. Quando Alfonso desenrolou mais outro tanto de gaze, ela sacudiu a cabeça e protestou:
— Chega!
Alfonso fitou-a com os olhos expelindo chamas, pronto para brigar.
— Assim o pobre cão não vai poder respirar — Anahi quase gritou.
Ela calçou as luvas de novo, pegou a tesoura e, com muita calma, terminou o curativo. Em seguida examinou o animal. O cachorro e o oficial a fitavam de olhos arregalados e silenciosos. E Anahi pôde ver que a fúria do homem se dissipava aos poucos.
— Oficial...
— Herrera — ele terminou.
— Oficial Herrera, meus conhecimentos acerca da anatomia de cachorros são limitados, mas me parece que ele não tem uma perna quebrada. Talvez uma ou duas costelas, contudo respira normalmente e acredito não ter havido perfuração dos pulmões. Não há sangue na boca, no nariz, ou nas orelhas. Por isso, se houve hemorragia interna, não deve ser grande. E isso — ela interrompeu tirando as luvas — é absolutamente tudo o que posso fazer.
Ele sorriu. O oficial Herrera era um homem atraente. Agressivo mas muito atraente. Quando Anahi percebeu que ele a encarava, ficou embaraçada.
— Obrigado, dra...
— Não sou médica — ela corrigiu-o. — Sou a enfermeira Portilla.
— Enfermeira Portilla — Alfonso repetiu. — Obrigado por me dar paz de espírito, madame.
Anahi sentiu seu pulso acelerar. Poucas pessoas a chamavam de madame. E ela se alegrou.
— De nada. Agora, por favor, saia daqui enquanto ainda tenho um emprego.
Alfonso examinou-a discretamente. Os olhos azuis eram magníficos, e a boca... A mulher tinha um rosto de expressão suave, mas com uma vitalidade capaz de convencer os rapazes da vizinhança a comprar binóculos. Alfonso pôs-se a pensar no telefonema da véspera. Mas o ganido do cão o fez se lembrar da imediata prioridade. Com cuidado, enrolou o animal e ergueu-o da mesa.
Anahi segurou a porta aberta.
— Eu estava mesmo saindo — ela disse. — Vou lhe mostrar o caminho da saída.
— Para garantir que estou mesmo saindo daqui?
— Mais ou menos isso. Enquanto ele sorria Anahi pegava a bolsa que estava atrás do balcão.
Comunicou ao empregado que ia sair, ordenando que imediatamente se desinfetasse a sala de exame número três.
Alfonso desejou muito saber, ansiosamente mesmo, se a linda enfermeira estava envolvida com alguém. Era evidente que uma mulher bonita como aquela teria um namorado ou um marido que ganhava dez vezes mais do que um policial. Alfonso tentava manter a cabeça do cachorro coberta enquanto saíam, para que a enfermeira não tivesse problemas. Porém o pobre do cão gania o tempo todo.
— Anahi!
Ao som do nome que estivera na periferia de sua mente o tempo todo, Alfonso parou. A mulher a seu lado hesitou por segundos, e depois continuou andando.
— Anahi! — a mesma pessoa repetiu, mais alto agora. Alfonso virou-se e deparou com uma mulher gorda, que corria atrás deles. A linda enfermeira também virou-se.
O nome dela era Anahi? Alfonso nunca em sua vida conhecera uma mulher chamada Anahi. Que surpreendente haver encontrado duas em menos de vinte e quatro horas? Seriam ambas uma só? Tentou comparar a voz da enfermeira com a da mulher do telefone. Era possível, ele quase riu, porém pouco provável.
Mas ainda sua mente teimosa procurava encontrar uma possibilidade de as duas fabulosas mulheres serem a mesma... Não, simplesmente não poderia ser.
— Saia logo daqui — Anahi sussurrou com o canto da boca. Mas os pés dele recusavam se mover.
— Anahi — a mulher gorda disse de novo, agora ofegante por causa da corrida. Parou em frente deles e logo ouviu o ganido sob o cobertor. — Isto é um cachorro?
— Melanie, você quer alguma coisa de mim? — a enfermeira Portilla perguntou, ao mesmo tempo em que franzia a testa para o oficial, indicandolhe a saída.
Melanie espichou o pescoço com os olhos arregalados de curiosidade. Em seguida entregou a Anahi um papel amarelo, com algo escrito.
— Quase ia me esquecendo de lhe dar este recado. Manuel telefonou e disse que teve de viajar inesperadamente.
Alfonso engoliu em seco e por pouco não derrubou seu paciente. Manuel?

Alfonso ficou sem fala. Encarou a mulher que acabara de conhecer, enquanto ela lia o recado que tinha na mão. Então, essa encantadora criatura era a mesma da voz de veludo que o excitara tanto na noite da véspera? Ele ficou com a pele do corpo todo eriçada, ante a evidência.
— Obrigada, Melanie — ela disse e depois continuou andando, parecendo perdida em pensamentos.
Porém Alfonso não estava nada pronto a deixar que a enfermeira Anahi Portilla saísse de sua vida. Correu para perto dela, apesar do peso que carregava, e ordenou:
— Espere!
Anahi virou-se, mas não pareceu nada entusiasmada ao vê-lo ainda a seu lado.
— Como lhe disse, oficial, a clínica veterinária fica na Sixteenth Street. Não é preciso ter hora marcada com antecedência para ser atendido.
— Não a conheço de algum lugar? — ele perguntou, desesperado por prolongar a conversa.
Anahi ficou perplexa.
— Penso que não. Nunca tive problemas com a polícia.
— Anahi Portilla — ele murmurou para si mesmo, fingindo tentar se lembrar de onde a conhecia, quando, na realidade, gostava do modo como o nome dela saía de seus lábios. — Anahi Portilla.
— Talvez o senhor me tenha visto em um dos saguões do hospital — ela sugeriu.
— Um minuto — Alfonso disse, improvisando um artifício. — Conheço um rapaz chamado Manuel que tem uma namorada chamada Anahi.
— Manuel Velasco?
Ah, era essa a identidade do homem!
— Bem... deixe-me pensar. — Ele segurou o cachorro com apenas um dos braços e estendeu-lhe a mão. — Alfonso Herrera.
Anahi hesitou um pouco, mas depois colocou sua mão macia na dele.
— Muito prazer, oficial Herrera.
— Chame-me de Alfonso — ele pediu, relutante em lhe soltar a mão.
— Direi a Manuel que o conheci, quando ele voltar da viagem de negócios.
Oh! Oh!
— Bem, Manuel pode não se lembrar de mim, só falei com ele algumas vezes. Talvez na academia de ginástica...
— Uma academia em Arrow Street? É onde Manuel trabalha. — Anahi acariciou a orelha do cachorro. O cobertor caíra um pouco e a deixara descoberta. — Pobrezinho, espero que esteja bem.
Alfonso estava atônito com a coincidência que os unira. Não era do tipo supersticioso, mas devia ter sido uma espécie de sinal...
— Bem — ela disse, acenando um adeus com a mão —, boa sorte. Tenho certeza de que a clínica vai devolver seu amigo novo.
Alfonso examinou-a mais uma vez. Que corpo fabuloso! Os cabelos escuros estavam presos na nuca por uma fivela, e caíam até a metade das costas.
A enfermeira Anahi Portilla andou uns trinta passos até o ponto do ônibus, e sentou-se no banco de madeira para esperar pela condução, como se não fosse a mais linda mulher das ruas de Birmingham.
Ele sorriu, e um pouco da conversa que tivera com a moça veio-lhe à mente: direi a Manuel que o conheci, quando ele voltar da viagem de negócios.
A mais linda mulher das ruas de Birmingham estaria sozinha durante alguns dias.
O cachorro ganiu. Alfonso apressou-se em pegar seu carro.
Anahi mudou de posição no banco, o rosto queimando de vergonha. Se Manuel preferira deixar um recado para ela no hospital em vez de lhe falar.

Muito quente para dormir AyA - ADP (Finalizada)Onde histórias criam vida. Descubra agora