"Flor de Lótus" | Luna Valdez e Miima

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Mais um livro em que a narração me chamou muito a atenção

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Mais um livro em que a narração me chamou muito a atenção. E aproveito para admitir, logo de cara, que estava ansioso para ler "Flor de Lótus" por ser uma história ambientada numa mitologia oriental. O meu livro também é, apesar de mais próxima à japonesa, e sei bem como uma história com esses traços cobram certas particularidades.

Mas voltemos à narração, especificamente a do primeiro capítulo, que é uma obra de arte.

Um canto de dor e vingança.

Até bem próximo do fim do capítulo, o narrador me deu a nítida sensação de que era uma entidade a manifestar o sofrimento de uma tropa pela impotência da derrota.

A narração chegava aos meus "ouvidos" como lamúrias uníssonas que escapavam das almas que se debatiam pelo campo de batalha. Eram essas almas desesperadas que cuspiam suas maldições contra o exército tirano que cruzava o horizonte com os espólios da vitória.

A Lótus sangrenta, alvo do ódio daqueles que pereciam ante sua supremacia. Alvo do ódio que vinha do âmago de sua alma. E do último vislumbre de vida daqueles que partiam.

A nefasta flor que era tão vermelha e cruel quanto o sangue que manchava as faces pálidas dos que outrora buscaram lutar contra a tirania do Filho do Céu e fracassaram.

Não é maravilhoso?

Consegui enxergar com propriedade a cena trágica ao fim da batalha, não só pela qualidade da narração, mas também pela capacidade das escritoras (sim, esse livro foi escrito em dupla!), em evocar imagens poderosas, repletas de texturas e sensações.

Como não sentir um parágrafo como este?

Os dedos manchados apertaram a areia com os últimos resquícios de força e enquanto o esplendor do firmamento era encoberto pela tempestade castanha que tomou o ar, uma promessa muda de vingança foi feita no vasto silêncio.

E como se não fosse suficiente essa particularidade da narração de "Flor de Lótus", ela ainda nos reserva uma reviravolta. Não apenas na história, mas no próprio narrador, que, de uma entidade composta pelos lamentos de um exército derrotado, transforma-se numa única voz, a de um homem que sobreviveu à morte e provavelmente se erguerá em vingança.

... enquanto o esplendor do firmamento era encoberto pela tempestade castanha que tomou o ar, uma promessa muda de vingança foi feita no vasto silêncio.

A narração continua a surpreender no segundo capítulo, quando somos apresentados ao protagonista (ou a um deles, quem sabe). Aqui, ela ganha um tom melodioso, que parece fluir junto ao vento que bagunça a relva. O cenário paradisíaco e a postura reflexiva Shun Hai parecem contaminá-la, que, com belos adjetivos, evoca a natureza como num poema de contemplação.

Quando o protagonista se depara com seu antigo grande amor, a narrativa toma a forma de um fluxo de consciência, ao transbordar os parágrafos por pensamentos que se desdobram em outros pensamentos correlacionados.

Sentiu-se um tanto invejoso por não ter sequer um pelo no rosto, mas acreditava que não ficaria tão bem de barba quanto o amigo de infância. Lembrava-se que tudo ficava bem em Long Wei.

Até mesmo a solidão, por mais cruel que pudesse soar, lhe caía bem.

A solidão que, inicialmente, foi o que os uniu.

Há vários tipos de "Fluxo de Consciência" na literatura, que geram inúmeros debates, mas, em grosso modo, essa técnica nada mais é do que a tentativa do escritor de representar em palavras as singularidades da mente humana.

Normalmente uma narrativa em Fluxo de Consciência é um conjunto de memórias e reflexões que surgem em meio a um encadeamento, muitas vezes caóticos, de pensamentos do protagonista.

Robert Humphrey, no livro "O Fluxo da Consciência", sugere ao escritor duas regras para escrever neste estilo:

"(1) representar a verdadeira textura da consciência, e (2) destilar algum significado desta para o leitor. Isto constitui um dilema para o escritor, porque a natureza da consciência subentende um senso de valores particular, associações particulares e relacionamentos particulares, peculiares a essa consciência; por isso, é mais enigmática para uma consciência de fora"."

Ou seja, o escritor deve buscar, a todos custo, representar a mente do seu personagem, linkando seus pensamentos numa enxurrada de relações e significados, respeitando sempre o seu jeito único de pensar. Essa narrativa, entretanto, deve ter um encadeamento lógico e claro para que o leitor não só entenda o fluxo dos pensamentos do protagonista, como também compreenda melhora sua forma de ver o mundo.

"Flor de Lótus" não chega a ser um "Fluxo de Consciência" por completo, já que a história não se interessa apenas pelos pensamentos do protagonista. Mas emprega essa ferramenta para revelar mais da personalidade de Shun Hai, desenvolvendo seu passado e o contexto ao redor dele. Usá-la foi uma baita sacada.

Sinto até uma certa inveja (rs) e explicarei o porquê.

Uma sociedade oriental, principalmente na China no século XV, é pautada, mais do que qualquer outra, na dissimulação social, já que lá a comunidade se sobrepõe ao indivíduo. Há uma busca tão insana pela ordem, pelo respeito à hierarquia, que o próprio indivíduo coloca suas necessidades, seus desejos e particularidades, de lado, forçando-se a moldar sua própria personalidade de acordo com que é esperado pela comunidade em que ele está inserido.

Então, um personagem oriental deveria ser tão podado e submisso às suas obrigações dentro de uma história, que nós, leitores, não conseguiríamos decifrar seu real caráter apenas em suas atitudes, em sua relação com o externo. Mesmo em situações extremamente dramáticas.

Daí a fantástica ideia de se usar o "Fluxo de Consciência" num contexto oriental. Pois não só poderemos acessar os pensamentos mais profundos dos protagonistas, como teremos a rara oportunidade de compará-los com suas ações, julgando assim suas contradições, seus sacrifícios, toda a mutilação que ele próprio se impõe.

Além de uma ótima forma de construir personagens complexos, com milhares de camadas, ajuda e muito a gerar empatia no leitor.

Quem não quer abraçar personagens que sofrem por não poderem ser o que de fato são?

...

Mais uma resenha finalizada. Esperam que tenham gostado dela, em especial a Miriã Moreira e a Bárbara Júnia. ;)

Muito obrigado e um abraço apertado em cada um que leu, votou, comentou e ajudou a divulgar o Projeto 1001 resenhas. Como eu sempre digo, vcs são demais!

Vamos às perguntinhas?

- Qual o melhor exemplo de livro que usa o "Fluxo de Consciência"? (Vamos criar uma lista com ótimas referências.)

- Qual o seu maior desafio quando narra os pensamentos dos personagens?

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