"250 Quilômetros" | Martell Fake

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O mundo até parece pequeno assim: o oceano que liga continentes, uma ponte que liga fronteiras municipais, um poeta morto na Europa e duas cidades com problemas para acertar a geografia das águas que as banham. Era possível até se sentir grande, mesmo que meus olhos nem fossem capazes de captar os motoristas dos automóveis que bordavam a ponte de Rio Grande vista do terceiro andar do campus da universidade.

Acho que há uma preferência dos escritores que estão começando a carreira em narrar uma história em primeira pessoa. Talvez seja algo inerente ao próprio ato de contar uma história, já que será o escritor a contá-la por meio do protagonista. Daí a escolha óbvia de se usar a primeira pessoa.

Mas engana-se quem acha mais fácil escrever um livro na primeira pessoa. A dificuldade está exatamente em distanciar o máximo possível o protagonista do escritor. E, ainda mais importante que isso, em oferecer ao leitor um protagonista que seja de fato interessante. Por que acompanhar um personagem que pense coisas óbvias? Que construa reflexões banais que não levam o leitor a lugar nenhum?

Como vocês puderam ver no trecho do livro "250 Quilômetros", que escolhi para começar a resenha, Caroline usa muito bem o narrador em primeira pessoa, tecendo reflexões não só interessantes do protagonista, como desenvolvendo-o por meio delas.

E Caroline continua.

Era como ser abraçado pela possibilidade de caminhar pelo mundo inteiro com uma passada, largar a inércia, parar de esperar pela morte lenta dos cigarros e seguir em frente, passar pela ponte, atravessar a cidade e chegar até a praia mais extensa do mundo, ali, a uma hora de distância.

Como eu adoro "parar de esperar pela morte lenta dos cigarros". Uma relação que revela muito sobre o protagonista. Logo imaginei Alexander como um daqueles jovens intelectuais, com seus blusões de estampas quadriculadas, sempre com um maço de cigarro no bolso, óculos de armação mais grossa, que, apesar de ser um homem sensível, sempre carrega uma resposta ácida na ponta da língua.

Um personagem que consegue não só racionalizar como debochar do próprio acidente, que o pôs numa cama de hospital.

Como eu havia dito na resenha de "Elliot", de Beatriz Souza, numa narrativa em primeira pessoa, mais importante que a história é a forma como ela é contada. É pela criatividade de Elliot que passamos a achar seu cotidiano enfadonho tão interessante a ponto de querermos acompanhá-lo. E é a forma como Alexander nos revela o acidente sofrido que passamos a entendê-lo em toda a sua complexidade.

Alexander é um estudante de arte, não ortodoxo, que vê a beleza do mundo com olhos afiados. Ele não mencionaria seu acidente de forma óbvia. Nunca! Sua inteligência não se limitaria a isso. Ele prefere discorrer sobre a imprevisibilidade do mundo, sobre suas belas incoerências, relacionando sua queda, de uma sacada no terceiro andar, com o famigerado "efeito borboleta".

Y entra em seu automóvel, mas no processo, graças a escuridão, deixa a chave cair embaixo do banco. Enquanto isso, na sacada do terceiro andar, eu me inclinava um pouco para frente, escorado no parapeito e inspirado pelos pensamentos... Y não consegue achar as chaves, seu espaço é pequeno, ele precisa se colocar em uma posição de contorcionista e sem querer ele encosta o cotovelo na buzina da condução e o barulho estridente ressoa por todos os cantos... Eu, lá, perigosamente escorado no parapeito, me assustei, me desequilibrei e caí do terceiro andar para atingir o chão de concreto.

...

Pode soar trágico, mas é ridículo!

Três costelas, um braço quebrado, uma luxação na perna... parece que foi lucro, eu poderia ter fraturado o pescoço ou a espinha, ter morrido ou acabado em uma cama pelo resto dos meus dias.

Há tantas coisas a falar desse trecho. O mais interessante para mim é que é a bendita mania de Alexander de ficar a refletir sobre tudo, algo que o torna tão atraente, a culpada de seu acidente. Uma ironia gostosa, digna do protagonista de "250 Quilômetros".

Gosto da forma como Caroline tece Alexander por meios de suas reflexões e em como elas são coerentes com o protagonista escolhido. Isso o torna mais real, quase palpável, para o leitor. Uma tarefa difícil, realizada com muita segurança. A mesma visão fria, repleta de sacarmos, que permite Alexander fumar, ainda que tenha consciência dos danos causados, faz com que ele deboche da sua própria tragédia, mesmo demonstrando alguma gratidão por ela não ter sido tão grave quanto poderia. É a mesma forma complexa de pensar que o faz criticar o estudo matemático das artes, enquanto relativiza, com acentuada racionalidade, o mundo e o seu acidente.

Adorei o Alexander! (\o)

Por sorte não me fodi tanto quanto poderia. Parece que eu sou só um maldito imã para cenas dignas de episódios de South Park... Tipo o Kenny, o Butters ou uma mistura dos dois.

Mas, enfim, lá estava eu, em um hospital e hospitais são como um livro escrito em conjunto por Stephen king, Lovecraft e Poe: as paredes brancas, as luzes muito claras, os sons metálicos vindo dos corredores e aquela certeza fria de que provavelmente, alguém já morreu em cima daqueles mesmos lençóis nos quais eu estava deitado.

Como é importante construir a história por meio das associações que o protagonista faz. Nossa mente constrói nossos pensamentos por meio de conexões entre nossas experiências. Aprendemos assim, nos desenvolvemos assim, então é obrigatório que um personagem pense dessa maneira. Torna-o humano. Mais que isso, revela sua história e sua forma de encará-la.

Descobrimos com esse trecho não só os gostos literários e televisivos de Alexander, algo que define bem sua personalidade, mas também a maneira com que ele relaciona tudo o que consumiu com seu dia a dia. Além do próprio fato de que, ao usar símbolos culturais tão populares como South Park e Stephen King, Caroline estabelece a temperatura do seu livro, ao fazer o próprio leitor resgatar essas e outras referências.

Vale ressaltar a visão terrível que Alexander tem de um hospital. Nada poderia ser mais aterrorizante do que algo desenvolvido por esses três escritores. A bela ironia está no fato de que será neste mesmo hospital que o protagonista provavelmente descobrirá a paixão.

Palmas para Caroline e para seu talento ao construir um protagonista tão criativo em suas mais humanas contradições.

...

Ufa, mais uma resenha! Espero que todos tenham gostado, em especial a Carol.

Não tem sido muito fácil equilibrar meu tempo (final de livro é dureza!), mas tenho recebido um feedback de vcs tão positivo que logo surge o gás e o dia ganha alguns minutos a mais! Rs

Muito obrigado, mesmo, a cada comentário de vcs, a cada voto e contribuição na divulgação. Tenho muita gratidão pelo grupo que vem sendo construído com esse projeto.

Vamos à perguntinha do capítulo?

- Algo que me surpreendeu muito no Wattpad foi a quantidade de livros no presente. Algo que eu achava ser bem raro no mercado editorial. Quais pontos levariam um escritor a optar por uma história no presente?  

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