A Camareira

4 0 0
                                    

    Quando eu completei meus cinco anos de idade, perguntei a camareira do orfanato como eu havia parado lá, e por que todos ao meu redor sonhavam em ter pais - eu nem sabia o que era isso, a maioria chegou ali com sete ou oito anos. Eu cheguei com apenas três meses, eu não sabia nem o meu nome, tudo que sabia até hoje é o que me contaram, ela me dizia que uma gaivota linda havia me dado a ela de presente quando eu era só um bebezinho, mas desde pequeno eu lia meus livros e eu sabia que esse lance de gaivota era uma grande mentira, pais contam às crianças que a gaivota que as trouxe ao mundo para não conversar com elas sobre sexo. Eu sabia que a história da gaivota era falsa, mas eu não sabia qual era a verdadeira história. Não sabia quem eram os meus pais e muito menos por que eu estava preso naquele orfanato. Quando completei meus quatorze anos, a camareira me contou toda a história, fui abandonado aos três meses na beira de um riacho e o resto vocês já sabem. A camareira se chamava Lina, ela tinha um metro e sessenta, tinham olhos castanhos que brilhavam como a luz do sol e cabelos escuros, e tinha uma voz doce e calma. Ela tinha muita paciência e todas as manhãs ela ia até o meu quarto me acordar e a noite ela me punha pra dormir. Quando eu perdia meu sono durante a noite ela ficava comigo me fazendo companhia e lia varias história para mim até que eu pegasse no sono.

    Lembro-me de quando eu tinha quatorze anos... O dia em que eu perdi a mulher da minha vida. Era uma noite chuvosa e Lina estava limpando o corredor perto do meu quarto, quando ouvimos uma explosão e a luz do orfanato acabou, saí do quarto e vi Lina olhando pela janela com uma preocupação no olhar, perguntei a ela o que estava acontecendo e ela despistou e disse que não era nada demais, então ela se ajoelhou perto de mim, colocou os braços em volta do meu pescoço e disse.
    - Meu pequeno Joel, você precisa ser forte. A vida nunca será fácil pra você, a vida não é fácil para ninguém, olha pra mim! Sou zeladora de um orfanato imundo. - seus olhos se encheram de lágrima e suas mãos ficaram geladas - Joel, você é como um irmão mais novo pra mim saiba que eu sempre vou cuidar de você e que eu sempre vou estar com você.
    - Mas porque você está me dizendo isso, Lina? Você vai me abandonar também?
    - Existem pessoas más no mundo Joel, e infelizmente temos que dividir o nosso espaço com elas. Eu nunca te abandonaria, eu cuido de você desde que você era um bebezinho, e eu gostaria de te ver crescer e se tornar o homem maravilhoso que eu sei que você será o que me encheria de orgulho.
    - Eu vou cursar literatura, Lina. E eu nunca vou me esquecer de você.
    - Obrigada meu querido, eu amo você.
    - Eu também te amo, Lina.
   Uma expressão de medo tomou seu rosto assim que escutamos
outro estrondo vindo do andar de baixo.
    - Ouça meu pequeno, vá até o meu quarto amanhã de manhã
quando toda essa confusão já tiver passado!
    Eu não conseguia prestar atenção em suas palavras, o desespero e a dor se juntavam e tomavam as forças do meu corpo. Eu chegava a não conseguir me mexer, só de pensar em perder a Lina, eu não poderia suportar!
    - Meu pequeno, me ouça! Dentro da minha pequena gaveta, tem a chave do cofre do orfanato. Entre lá e descubra toda a verdade meu amor. Faça isso, e quando você crescer e tiver idade para entender, faça o que achar que deve ser feito.
    Ela segurava o meu pescoço e dizia com firmeza e segurança olhando fundo em meus olhos, seu olhar estava calmo, ela estava tentando não mostrar o desespero momentâneo, mas eu não conseguia conter o choro.
    - Que chave? Que cofre, Lina? Eu não posso ficar sem você, eu não tenho ninguém.
    - Eu sempre vou estar te escutando, mesmo que eu não esteja por perto, eu vou estar com você Joel. Eu prometo!
    Minhas lágrimas pareciam não ter fim, parecia que meu coração estava sendo partido ao meio naquele exato momento, estava suando frio e meu corpo tremia.
    - Agora entre no quarto e não saía até que a escuridão se  acabe.
    - Vem comigo Lina! - implorava puxando seu braço, mas quanto mais eu fazia força para puxa-lá para dentro, mais ela se afastava.
    - Eu preciso ir meu pequeno Joel! Faça o que eu te falei.
    - Tome cuidado Lina - ela me colocou no quarto e saiu.
    Quando a luz voltou e a chuva diminuiu eu ouvi uma gritaria no pátio e saí no corredor, havia uma multidão de órfãos em volta de um corpo esticado no chão com um pano por cima. Eu não entendi o que estava acontecendo direito, eu passava os olhos por toda multidão torcendo para que encontrasse Lina, mas eu não a via em lugar algum. Alguns minutos depois desci até o pátio para entender melhor o que estava acontecendo. E então a diretora se aproximou de mim com uma cara pálida e assustada
    - Joel, a Lina se foi.
    - Pra onde ela foi dona Selma?
    - Ladrões invadiram o prédio durante a chuva e eles queriam a chave do cofre, Lina não sabia onde estava a chave e eles a mataram e disseram que fariam o mesmo conosco se não entregássemos a eles tudo de valor que tínhamos.
    Após aquelas apalavras pela primeira vez eu havia sentido aquela escuridão que me atormentara por um longo período de minha vida. Eu não tinha meus pais, não tinha meu irmão, não tinha amigos e agora eu havia acabado de perder a única pessoa que gostava de mim em todo o mundo. Não esperei com que ela terminasse de falar e saí correndo para o meu quarto, passei dias sem comer e virava noites chorando. Sem Lina, o que eu faria da minha vida. Antes de morrer eu prometi a ela que cursaria literatura e que eu seria uma pessoa forte, mas não conseguia, eu tinha apenas quatorze anos e havia acabado de perder a única amiga que eu tinha.   

    Durante anos eu tive que viver com a cena de Lina morta no pátio do orfanato em minha cabeça, todos os dias quando eu saía no corredor lembrava dela varrendo o chão e passando pano no piso, todos os dias eu ouvia as crianças fazendo piadinhas com o nome dela e brincando com a sua morte, aquilo me partia o coração, além de perder uma amiga eu ainda tinha que ouvir aquelas coisas horríveis das outras crianças, todos aqueles comentários maldosos, todas as lembranças, e a saudade que eu sentia dela se tornavam cada vez mais raiva e frustração dentro de mim. Eu não conseguia pensar em seu nome sem com que meus olhos se enchessem de lágrimas, eu não podia lembrar de como sua morte fora injusta e não querer me matar também ou matar o causador de tudo isso. Eu estava sozinho, só Lina me entendia só Lina cuidava de mim. Ela foi o mais perto que consegui chegar de ter uma mãe, ou uma família. Eu estava totalmente perdido, mas iria me vingar, pela Lina.
    Eu nunca soube realmente o que é ter uma família e nunca entendi o seu real conceito, o mais perto que eu já tive de uma amizade era a de Lina, ela sempre me levava até a cozinha no horário das refeições, me lembrava de tomar banho e de estudar para as provas do dia seguinte. A diretora também era legal comigo e sempre me contava as histórias de minha mãe. Já meus colegas e principalmente as meninas me achavam esquisito o bastante para se aproximar de mim, a única lembrança que eu teria de meus pais biológicos era o colar de prata que eu tinha com um pingente escrito "King". E a única lembrança que eu tinha de Lina eram as que estavam em minha imaginação e os livros de história que ela lia para mim até que eu pegasse no sono.

EscuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora