Capítulo 1 _ Doze horas

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— Você estará de plantão amanhã? Justo no natal? Que coisa horrível! — Helena lamentou e eu encolhi os ombros, frustrada.

Não só pelo fato de ser natal, mas também por um pequeno detalhe que ocorreu em vinte e cinco de dezembro de mil novecentos e noventa. Nesta data nasceu a bebê mais sem sorte do universo, vulgo eu. Sabe qual o grau de azar em nascer em pleno natal? Não? Então deixa eu exemplificar: eu nunca tive festa de aniversário. NUNCA! Nunca ganhei dois presentes, ninguém nunca lembrou de me parabenizar e pior, meus amigos sempre estavam de férias com a família deles, exatamente por isso meus natais sempre foram entediantes com a minha pequena família barulhenta na casa da minha avó. Tínhamos uma pequena tradição: comer toda a ceia antes de meia-noite, enquanto meu tio nos irritava com suas velhas piadas do "pavê ou pacomê". Trocávamos presentes de amigo oculto na frente da pequena árvore de plástico derretido, efeito esse graças ao meu primo que resolveu acender "luzes de labaredas de fogo" quando criança. E por último, porém não menos importante, eu recebia os parabéns apenas da minha mãe, pois somente ela lembrava do meu aniversário. É óbvio que não dá para competir com Jesus.

Não bastasse tudo isso ainda tinha a minha sina de ter uma mãe loucamente apaixonada por literatura. Para ser mais específica, pelos livros de Shakespeare. Não nego que também gosto dos livros dele, entretanto colocar o nome da única filha como a protagonista que morre em cóleras de paixão não me parece uma ideia brilhante. Apesar que poderia ser pior, ao invés de Julieta eu poderia me chamar Cordélia... Então, vamos fingir que está tudo bem.

Crescer ouvindo piadas da tragédia italiana que cerca meu nome não foi nem de longe meu maior problema. Juntou isso ao fato de eu nunca ter tido sucesso em nenhuma relação amorosa na minha vida e minhas amigas logo concluíram: Julieta só é feliz com seu Romeu.

Viradas de olhos à parte, minha vida não estava muito longe dos dramalhões da literatura. Claro, minha família não era inimiga de nenhuma outra, ao menos até onde eu sabia. A rivalidade na verdade estava dentro da minha casa. Meu pai, para ser mais clara. Esse homem que eu não conseguia mais conceber como meu progenitor. Ele traiu minha mãe há alguns anos e após a descoberta não só da outra mulher como também de um filho bastardo à tira colo, minha mãe o perdoou. Eu sinceramente não consigo compreender como ela pôde perdoá-lo e ainda aceitá-lo de volta. Eu não teria estômago para tanto. Minha mãe sempre foi romântica demais, ter mais coração que razão a tornou vulnerável às canalhices do meu pai. Como existe aquele velho ditado: "os incomodados que se mudem", eu tirei meu time de campo e saí de casa aos vinte anos. Fui morar em uma república de estudantes enquanto dividia meu tempo entre estudar e estudar. Cursar medicina era uma realização tão grande, que mesmo quando batia os surtos internos causados pelo excesso de conteúdo para as provas e trabalhos, lá no fundo meu coração retumbava feliz, pois eu sabia que depois de todas as dificuldades eu estaria formada na área que eu sempre soube que era para mim. Viver com outras cinco garotas de cidades, gostos e personalidades diferentes foi uma grande experiência. Não recomendo para ninguém.

Quatro anos depois de sair da casa dos meus pais, me formei e fui a oradora da turma. Ali eu sabia que um novo caminho se estabelecia diante de mim. Minha família quase toda presente no anfiteatro (Obviamente meu pai não estava entre eles) me aplaudiram emocionados após meu discurso inflamado de expectativa e esperança. Logo após a minha formatura e minha admissão no hospital Santa Inês, meu pai foi embora de casa. Abandonou minha mãe e meus dois irmãos mais novos sem mais nem menos. Minha mãe ficou completamente devastada e eu acabei voltando para casa para cuidar deles. Alguns anos depois me especializei em neurocirurgia.

— Infelizmente são ossos do ofício. — Comentei tomando o resto do café horrível da lanchonete do hospital. Tinha gosto de água suja. — Mas, me diga, Helena, quais são seus planos para amanhã?

— Eu acho que vou aproveitar o natal e esse sentimento de harmonia sabe... E falar com meus pais. — Ela contou nervosa e eu a encarei preocupada.

— Tem certeza que é uma boa hora para falar com eles sobre isso?

— Nunca é uma boa hora para dizer: pai, mãe, eu não sou quem vocês pensam. — Ironizou receosa e eu peguei na mão dela sobre a mesa, tentando acalmá-la.

— Você está certa. Chega de se esconder. Boa sorte! Qualquer coisa me liga. — Desejei e ela deu um sorriso fraco em resposta.

Helena ainda era estudante de medicina e também a estagiária mais aplicada que eu já conheci. Era forte e determinada, porém quando o assunto eram os pais conservadores... a história mudava de figura. Eu temia pela reação de seus, porém tinha uma cirurgia importante pela frente e não podia conversar sobre os detalhes de como ela pretendia abordar o assunto com a família. Me despedi rapidamente dela e segui para o centro cirúrgico. Minha mente estava totalmente focada na paciente que estava com hipertensão intracraniana por hidrocefalia de causa desconhecida. Isso era terrível, pois hipertensão intracraniana não era uma doença e sim o sintoma de uma doença. Não saber o que estava causando o aumento na quantidade do líquido cefalorraquidiano no crânio era preocupante, entretanto, tínhamos que nos preocupar com um problema de cada vez. O líquido cefalorraquidiano fornece nutrientes para o cérebro, protegendo as células cerebrais, porém, lembrando que o cérebro fica dentro do crânio que nada mais é do que uma "caixa óssea" nada flexível, quanto mais pressão dentro, mais chances de ocorrer lesões cerebrais. Tínhamos que agir rapidamente.

Após me preparar devidamente, segui para a sala onde a paciente já se encontrava anestesiada e o estado era grave, pois apresentava quarenta miligramas de mercúrio de líquor, o que era considerado exacerbado. Após Ana fazer a tricotomia, raspagem do cabelo na região do ventrículo, era hora de abrir passagem.

— Vai ficar tudo bem. — Falei com a jovem desacordada e assumi meu lugar. — Trépano, por favor! — Pedi e Elisa, a instrumentadora, me passou a broca cirúrgica. Mesmo parecendo ser um instrumento bastante arcaico era o ideal para o incisões. Após perfurar o crânio era necessário remover as meninges, membranas que protegiam o encéfalo. — Pinça e tesoura. — Pedi e Elisa prontamente me entregou. Rapidamente cheguei ao local desejado e inseri o catéter no ventrículo. — Sucção. — Falei e Ana assentiu.

Ana era a cirurgiã assistente, e começou a drenar o líquor enquanto eu estava atenta ao monitor cardíaco, Carla, a enfermeira, me ajudava a conferir a pressão intracraniana. André, o anestesista bendito teu fruto entre as mulheres na equipe, checava o nível de oxigênio da paciente. Após drenar o líquor em excesso coloquei uma válvula de pressão regulável para unir os ventrículos à cavidade peritoneal, e assim sempre que a pressão do líquor aumentasse ele seria drenado para a cavidade abdominal, garantido que não acumulasse novamente no crânio.

A cirurgia foi um sucesso e a jovem foi transferida para a unidade de terapia intensiva. Após eu dar a boa notícia que aliviou os familiares da paciente operada, encontrei minha equipe tentando combinar uma ceia no hospital.

— Isso pode dar certo. Cada um traz um prato especial. — Carla insistiu e eu peguei mais álcool em gel para passar nas mãos.

— Não sei se vai ser uma boa ideia. — André sentou cansado na cadeira e nos olhou sem ânimo algum. — Eu preferia passar o natal em casa.

— Todos preferiam passar em casa, André, entretanto fomos escalados para o plantão. — Ana rebateu e eu acabei tendo que concordar com ela.

— Vocês têm razão. Eu trago o pavê, mas se alguém fizer a maldita piada infame eu mato. — Ameacei e todos riram.

— Tudo bem, se a doutora Julieta irá participar, eu também vou. — André falou sugestivo e as meninas o vaiaram. Senti meu rosto corar levemente e tirei meu jaleco. Peguei rapidamente a chave do meu carro, era hora de ir embora dali.

Um Clichê Para JulietaOnde histórias criam vida. Descubra agora