Capítulo 3 _ Reencontro e desencontros

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Eu acabei dormindo o dia todo, levantei somente à tarde e ignorei totalmente as notificações do meu celular. Fiz o pavê e comi uma amostra da deliciosa ceia que minha mãe estava preparando animadamente para mais tarde. O assunto Thiago havia sido deixado para depois e eu fui para o trabalho.

Cheguei a tempo de encontrar Helena e desejar sorte para ela. Enquanto eu seguia para a copa, Carla me encontrou no corredor.

— Eu preciso falar com você urgentemente. Por que não respondeu minhas mensagens? — Ela perguntou aflita e eu franzi a testa, sem entender suas cobranças.

— Só um minuto, vou colocar essa travessa de pavê na geladeira da cantina e...

— Você precisa me ouvir agora... — Ela insistiu me deixando realmente preocupada.

— O que houve, afinal?

— Acontece que ontem o...

— Filha. — Alguém interrompeu a frase dela e meu corpo estremeceu diante daquela voz familiar.

Virei lentamente para encarar o interlocutor e meus olhos não acreditaram no que viram: era Samuel bem à minha frente. Mais grisalho, mais magro e com a barba bem maior do que eu recordava.

— Você? — Perguntei incrédula e Carla tentou prosseguir.

— Era isso que eu estava tentando te dizer. Ele veio ontem à sua procura, eu tentei te avisar... — Minha amiga disparou a falar, porém eu não conseguia raciocinar direito.

O ódio estava banhando meu psicológico e eu apertei com força as bordas da travessa que segurava.

— O que o senhor faz aqui? — Perguntei rispidamente.

— Eu senti tanta a sua falta, querida. Você está tão linda, soube que se tornou a neurocirurgiã chefe. — Falou naturalmente se aproximando de mim e eu dei um passo vacilante para trás.

— O que quer? — Reiterei e ele abaixou o olhar. A aparência estava bem abatida, maltrapilha.

— Eu preciso de você, Julieta.

— Como assim? — Perguntei confusa e ele tirou uns papéis do bolso. Estavam bem amassados, mas percebi que se tratavam de exames.

— Eu estou muito doente, fui diagnosticado com insuficiência renal crônica... É bem grave e eu... Preciso da sua ajuda.

— Da minha ajuda? — Meu tom de voz beirava a incredulidade. Forcei minha visão naquela figura à minha frente, tentando me convencer de que não era um pesadelo.

— Meu médico acha que algum dos meus filhos possam ser compatíveis comigo para um...

— Transplante? É para isso que você me procurou? Porque precisa de um órgão meu? Só assim para você lembrar que tem uma filha, não é mesmo? Só assim para lembrar da família que você deixou para trás sem se preocupar. Sem pensar duas vezes. — Falei histérica tentando controlar meu tom de voz apesar do ódio.

— Julieta, calma! — Carla tentou me conter.

— Só assim para o excelentíssimo pai ausente retornar: para tentar me tomar um rim. Porque já não basta ter tomado minhas lágrimas e meu coração, não é mesmo? Nunca é suficiente.

— Eu te peço perdão... Eu errei muito com você, com seus irmãos, com sua mãe...

— Agora você lembra dela? Agora? Depois de tudo que a fez sofrer? — Questionei com lágrimas nos olhos que em pouco tempo já banhavam meu rosto. Minha voz falhava. — A mulher que fez de tudo por você e nunca recebeu um pingo de valor. Me poupe desse teatro. Você não convence ninguém com esse fingimento de que está arrependido e...

— Mas eu estou arrependido, filha. Eu...

— Não me chama de filha! — Pedi colocando a travessa de doce na mesa com toda força sobre a mesa, quase quebrando a travessa.

— Julieta, eu sei que errei muito e a maioria das coisas que eu fiz não tem perdão, porém... A minha situação é realmente grave. Se eu não fizer logo um transplante eu posso...

— Por mim que morra! Eu não ligo! Eu não vou te dar nada! Nada! — Falei transtornada. — Eu não vou mais ficar para a ceia. — Avisei aos meus amigos e me afastei.

Parei no primeiro canto que encontrei e comecei a chorar. Chorei tudo que guardei por anos. Chorei tudo que eu prendia por não querer demonstrar fraqueza. As lembranças dolorosas de todo sofrimento que meu pai causou martelaram na minha mente, me martirizando.

— Você precisa se acalmar! — Pediu me abraçando. Eu não conseguia simplesmente me acalmar. Meu corpo tremia de raiva, de mágoa, era uma mistura maluca de sentimentos. — Sei que isso tudo é muito complicado para você, mas daqui a dez minutos você tem uma cirurgia e... — Carla começou a dizer, mas foi mais uma vez interrompida, porém dessa vez pela voz imponente de César, o vice diretor do hospital.

— Ela não vai fazer cirurgia alguma nesse estado. Julieta, pode ir embora para sua casa e depois passe na psicóloga. Você não irá trabalhar hoje. — Ele decretou olhando nos meus olhos.

— Eu... Eu estou bem, César. Não posso ir embora. É dezembro, muitos profissionais estão de férias. — Falei engolindo o choro e tentando me recompor.

— Você não está em condições de trabalhar hoje. E não adianta argumentar. Não quero te ver aqui até que se recomponha novamente.

Eu não podia acreditar que depois de tanto tempo meu pai havia voltado e virado minha vida de cabeça para baixo.

Um Clichê Para JulietaOnde histórias criam vida. Descubra agora