Por mais que eu tentasse me convencer de era preciso ajudar meu pai, simplesmente não conseguia. Havia muitas coisas pendentes entre nós e isso não facilitava em nada a possibilidade de alterar minha decisão inicial. Agregado à isso tinha o fato de ter completado um mês após o nosso encontro conturbado, e ele misteriosamente havia desaparecido desde então. Isso levantou diversas questões na minha mente. Se ele estivesse realmente tão desesperado, iria sumir? Eu definitivamente não confiava no meu próprio pai e me sentia péssima por isso. Não sabia mais o que pensar.
Fui convocada para uma longa reunião com o conselho do hospital. Após horas sendo atacada por César, e depois de mostrar todos os meus atestados psicológicos em dia, começou o que pareceu ser meu julgamento. Após César tentar emporcalhar ainda mais minha imagem diante do conselho, eu pedi o meu direito de defesa. E foi então que eu coloquei para fora absolutamente tudo que estava engasgado:
— Obviamente a minha atitude na fatídica noite de natal barra meu aniversário, não foi digna de orgulho algum. Acontece que aquilo não foi fruto de nenhuma descompensação, nem nada disso. Senhores, meu pai traiu minha mãe, teve um filho com outra, foi perdoado e então depois de tudo simplesmente abandonou a família. Anos depois voltou como se nada tivesse acontecido apenas com interesse em receber ajuda. Creio que todos aqui já passaram por algum problema familiar que o tirou do sério. É natural do ser humano se revoltar contra o que lhe faz mal. Nenhum profissional de nenhum hospital jamais estará livre de problemas pessoais, e isso não importa quando deixamos fora do hospital. Por mais que aquele episódio deprimente tenha sido aqui dentro, por eu ter sido pega de surpresa pela presença daquele homem, nunca, em hipótese alguma deixei algo interferir em alguma operação. Sempre mantive minha responsabilidade no meu juramento por zelar pelas vidas de outras pessoas. Se fiz aquela operação foi porque eu me sentia em plenas condições mentais para atuar naquilo. Jamais colocaria a vida de um paciente em risco. O neurocirurgião Fernando ainda não havia chegado e o paciente estava em estado grave. Não podia esperar que eu mostrasse o atestado para vocês. — Argumentei e César riu sarcástico.
— O paciente poderia ter morrido por sua imprudência e nós teríamos que arcar com um provável e merecido processo. — Ele rebateu cruzando os braços e o conselho esperou uma resposta minha. Eu estava no meu limite.
— Mas ele não morreu. Segue em ótima recuperação, por sinal. — Respondi confrontando o olhar dele.
O conselho conversou por mais um tempo e finalmente deu a "sentença":
— Nós concluímos que você volte às operações imediatamente. Você tem toda razão, sempre foi uma excelente profissional, não vale a pena discutir isso por conta do atraso da entrega de um atestado. Porém devo salientar que a psicóloga sugeriu que fizesse um acompanhamento. Seria bom para você. Aceite isso como um conselho de amigo. — Hélio, o presidente do hospital, decretou e eu quase pulei de tanta felicidade. Em parte por presenciar a cara de paspalho de César ao ser contrariado, e claro, por poder voltar a trabalhar com o que era a minha paixão sem mais preocupações.
Agradeci e saí animada para contar para minha equipe que eu finalmente tudo estava resolvido.
❦❦❦
Dois dias depois tudo já tinha voltado ao normal na minha vida. Eu havia voltado a operar normalmente, para descontentamento de César.
Carla, Ana e André me convidaram para alguns drinks após o plantão e eu aceitei. Estava mesmo precisando desanuviar a mente. Antes de sair, porém, fiz mais uma das minhas visitas diárias à Romeu. Ele permanecia inconsciente.
— E então? O belo adormecido nada ainda? — Perguntei para Edneia, a enfermeira que estava no quarto, e ela sorriu.
— Está cada dia melhor. Pode acordar a qualquer momento. — Respondeu o observando e depois voltou a me olhar. — Você fez a coisa certa.
— Eu faria tudo de novo. Esse rapaz estava em uma situação bem grave quando o encontrei. — Contei me aproximando da maca e tocando cuidadosamente na mão dele que estava disposta ao lado do corpo inerte. — O mérito da cirurgia não foi só meu, ele também cooperou. Lutou bastante.
Para meu total espanto ele inesperadamente apertou minha mão.
— Edneia, ele está acordando! Ele está reagindo! — Falei admirada e ela correu para checar a situação.
Fiquei atenta ao monitor cardíaco para acompanhar se estava tudo bem com os sinais vitais dele, e quando olhei novamente para a maca, me surpreendi ao me deparar com ele me encarando. Seus lindos olhos castanhos pareciam extremamente confusos, mesmo assim ele não soltava a minha mão.
— Pode me ouvir? — Perguntei preocupada e ele piscou lentamente tentando olhar em volta.
Rapidamente o médico que acompanhava o caso dele chegou para analisar como ele estava. Tive que sair, pois estava na hora de encontrar meus amigos.
Troquei rapidamente de roupa e segui com meu carro para nosso bar favorito de sempre. André e Carla já haviam chegado. Pouco depois a Ana chegou e nós pedimos uma porção de batata frita.
— A Elisa não vem? — Perguntei e Ana deu de ombros.
— Sabe como ela é.
Elisa apesar de ser da nossa equipe há algum tempo não era muito de socializar conosco.
— Tudo bem, é só o jeito dela. — Falei animada ao ver as batatas sendo colocadas na nossa mesa. — Hoje é dia de comemorar.
— Posso saber o motivo da comemoração? — Carla perguntou sorrindo.
— Primeiro a minha volta para o hospital. — Respondi erguendo meu copo e nós brindamos eufóricos. — E segundo, nosso paciente finalmente acordou.
— Que ótima notícia! — Ana vibrou e André franziu a testa.
— Como soube disso?
— Eu estava lá na UTI quando ele despertou. — Respondi após sugerir um novo brinde.
— Espera, o que você estava fazendo lá? — André insistiu me deixando ligeiramente incomodada.
— Ora, fui ver como ele estava.
— E desde quando você visita os pacientes que opera? — Ele perguntou irônico e eu respirei fundo, tentando manter a calma.
— Desde quando tenho que te dar satisfações sobre minhas atitudes? — Perguntei em tom de brincadeira, mas no fundo estava falando bem sério.
André adorava se meter onde não era chamado e isso era demasiado irritante.
— Você não está impressionada com o nome dele também, não é? — Zombou e eu o encarei.
— Também?
— Sim, porque essas duas aqui ficaram em polvorosas com a palhaçada dos seus nomes. — Reclamou cruzando os braços e eu continuei comendo a batata. — Me diz que você não está embarcando nessa idiotice também.
Eu não respondi, não estava com a miníma paciência para as cobranças sem sentido do meu amigo. Não permiti que nada acabasse com minha dupla alegria. Minha felicidade por Romeu estar bem era estritamente relacionado por ele ser meu paciente. Nada mais que isso.
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Um Clichê Para Julieta
RomanceQuando William Shakespeare escreveu a história de Romeu e Julieta há meio milênio atrás, ele nem sequer imaginava a tradição que estava criando em tais nomes. Tal influência perdura até os dias atuais, principalmente no movimentado hospital de Santa...