Capítulo 11 _ Dor alheia doendo em mim

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Estava conversando com Ana no elevador enquanto ela me contava uma notícia que estava deixando todos alvoroçados: — Estamos falando de algo muito além do que esperávamos do presente. Um bebê geneticamente modificado com três genes é um evento científico a ser comemorado.

— Não se anime tanto, esqueceu da bioética? A ciência sempre será barrada na sua evolução. Aposto que isso deve estar em pauta em discussões pelo mundo todo. — Afirmei desanimada com os obstáculos que a ciência sempre tinha pela frente.

— Com certeza, mas é inegável que o futuro já chegou. Já imaginou ter um filho e saber que ele não corre risco de desenvolver uma doença mitocondrial? Seria uma garantia que todas as mães deveriam ter. — Ana falou empolgada e nós rimos com seu utopismo ao sair do elevador.

Caminhamos pelo primeiro andar e então chegamos ao berçário. Encontramos Helena toda sorridente, observando pelo vidro Bernardo dormir.

— Ei, mocinha! Não deveria estar trabalhando? — Estranhei e ela me olhou sem jeito.

— Deveria, mas vim rapidinho para ver o Bernardo. — Explicou e nossos olhares foram atraídos pela pequena fofura que estava há poucos metros de nós.

— Ele é lindo, não é mesmo? — Ana perguntou e eu sorri concordando.

— Mais lindo mesmo foi ontem, o parto. — Helena recordou empolgada e nos olhou com os olhos brilhantes de determinação. — Sabe quando você recebe finalmente um sinal de que está no caminho certo? Foi assim que me senti ao auxilar o parto. — Contou voltando o olhar para o bebê. — Essa é realmente minha vocação.

— Que bom que encontrou sua vocação tão cedo. — Ana falou sorrindo. — Alguns, como eu, só encontram depois dos trinta.

— Cada um tem seu próprio tempo. Seu próprio tempo de nascer, de escolher um caminho, de tomar uma decisão e de partir desse mundo. É isso que nos faz único, os nossos tempos. — Falei sem perceber que estava divagando e então notei que ambas me observavam atentas.

— Isso foi realmente lindo! — Ana afirmou e sorriu para Helena. — Nunca é tarde demais para a vida.

Voltamos a observar Bernardo que parecia acordar. Mexia os minúsculos braços arrancando suspiros nossos. Após uma breve visita que fizemos à Sônia, descobrimos que além de estar em perfeita saúde, logo receberia alta. Apesar da tristeza de voltar para casa sem o filho, estava contente por saber que ele estava reagindo bem. Se tratava de um pequeno guerreiro.

Quando voltamos para o quarto andar, me surpreendi ao me deparar com Romeu andando pelo corredor com os pais à sua volta.

— Ei! — Os chamei e todos me olharam sorridentes.

— Romeu finalmente recebeu alta. Agora vai para casa, não é ótimo? — Margarete tomou a frente de me dar a notícia e eu dei um sorriso fraco. Claro que estava feliz pela recuperação dele, entretanto senti um aperto estranho dentro de mim.

— Que boa notícia! Mas vá com calma, hein? Nada de travessuras. — Aconselhei e Romeu lançou seu mais lindo sorriso fazendo meu coração palpitar repentinamente.

— Muito obrigado por tudo, Julieta! — Ele falou se aproximando de mim e inesperadamente me abraçou apertado.

Eu não soube como reagir e demorei um pouco a retribuir devido a supresa. Sentir o perfume e o calor do corpo dele me deixaram extremamente constrangida.

— Obrigado mais uma vez. — Falou no meu ouvido, me fazendo arrepiar com a proximidade dos seus lábios e então se afastou. — Posso te convidar para um jantar? É uma forma simples de agradecimento, afinal sei que nada do que eu faça jamais chegará aos pés do que você fez por mim.

— Não... Não é necessário que faça nada. Imagina. — Garanti tentando me recompor e ele não pareceu convencido.

— Por favor, me dê seu número para marcarmos algo. — Pediu eufórico me deixando ainda mais sem jeito.

— Vamos fazer assim então, me passa seu número e então te ligo. — Sugeri e ele pareceu desconfiado.

— Vai me ligar mesmo?

— Claro, vou sim. — Menti e ele voltou a sorrir.

— Por sorte minha mãe trouxe hoje meus cartões de trabalho como engenheiro para me mostrar. — Contou e Margarete sorriu abrindo a bolsa e procurando algo avidamente. Logo em seguida me estendeu um cartão onde estava escrito os números de Romeu.

Agradeci e tanto ela como o marido também fizeram questão de me abraçar. Após a despedida mais emotiva que eu já havia tido nos últimos meses eles foram embora. Antes de entrar no elevador Romeu virou uma última vez e sorriu novamente para mim. Meu coração apertou ao imaginar que não o veria mais. Talvez fosse melhor assim. Helena e Ana me olharam curiosas e eu dei o meu melhor sorriso para elas, garantindo que estava tudo bem, mas não estava.

❦❦❦

O clima entre André, Elisa e eu definitivamente não estava entre os melhores. Entretanto tivemos que deixar nossas confusões de lado em prol da mulher que estava sobre nossa responsabilidade.

— Sucção! Rápido! — Pedi e Ana prontamente começou a drenar.

— A hemorragia está muito intensa. — Elisa constatou e eu observei o monitor cardíaco.

— Eu espero que o marido dela fique mofando na cadeia pelo resto da vida. — Praguejei enojada e olhei para o rosto tão angelical que estava desacordado na minha frente. Era uma vítima de violência doméstica. Meu estômago revirava só de imaginar o que ela já não teria passado até chegar naquele ponto. A cabeça estava dilacerada. O crânio afundado, a parte posterior do lobo frontal do cérebro estava lesionado, o que indicava uma possível paralisia se ela sobrevivesse.

Se.

O quadro era realmente muito grave, fizemos tudo que podíamos e mesmo assim não foi possível controlar a hemorragia. Eu me sentia tão impotente diante daquele monitor cardíaco zerado. Mais uma vida perdida para o feminicídio. Infelizmente.

Saí do hospital e entrei no carro após o término do meu turno. Deitei minha cabeça no volante, arrasada. Eu nunca me acostumaria com a morte. Algumas lágrimas insistiram em cair e eu respirei fundo. Subitamente me veio em mente as palavras da minha orientadora da faculdade, que dizia que em hipótese alguma poderíamos nos envolver emocionalmente com os problemas dos nossos pacientes, mas como isso era possível? Eram vidas como as nossas.

Após um tempo maior do que eu pretendia parada dentro do meu carro sequei as lágrimas e respirei fundo. Decidi que precisava sair, dar uma volta para tentar driblar os meus próprios pensamentos.

Intuitivamente peguei meu celular dentro da bolsa no banco do passageiro, e digitei o número do cartão esverdeado que encontrei ali.

"— Alô? —" Ouvi a voz familiar do outro lado e mesmo sabendo que não deveria tomar tal iniciativa, continuei.

"— Ainda quer jantar comigo? "— Perguntei e ouvi sua risada amistosa. Sabia que ele tinha me reconhecido. Sabia também que era errado o que eu estava fazendo e decidi me auto ignorar.

Um Clichê Para JulietaOnde histórias criam vida. Descubra agora