Cheguei exausta em casa, me deparei com Guilherme deitado no sofá da sala, dormindo com a televisão ligada, ela o assistia roncar. Desliguei a TV e peguei ele com cuidado no colo, o levei para a cama. Cobri ele com o cobertor e saí silenciosamente do quarto. Gui tinha dez anos e não admitia ser carregado como "um bebê" por ninguém. Segui pelo corredor e abri lentamente a porta do quarto do Thiago, meu irmão do meio, e para minha não surpresa o rebelde adolescente não estava em casa mais uma vez. Isso só podia significar uma coisa:
— Mãe? — Chamei e ouvi a voz dela responder da cozinha. Fui até lá. Me deparei com ela parada ao lado do fogão, com os braços cruzados encarando a chaleira com água fervendo como se esperasse respostas da mesma. — Boa noite! — Falei me aproximando e beijando o rosto abatido dela.
— Boa madrugada, querida! Está com fome? Quer que eu prepare algo?
— Não precisa. Tomei café no hospital antes da última cirurgia. — Respondi e ela foi até o armário voltando em seguida munida com o pote de açúcar e de café.
— E desde quando aquele "chá-fé" mata a fome de alguém? Senta aí, vou preparar um café decente.
— Tudo bem. — Me rendi largando a bolsa de lado e a observando enquanto ela fazia tudo com extrema atenção. Era visível o cansaço físico e mental dela. Havia enormes e profundas olheiras em volta de seus tristes olhos negros que mais pareciam um céu noturno sem estrelas. Já não tinha mais idade para lidar com crise de adolescente rebelde. — Ao menos sabe onde o Thiago está?
— Não faço nem ideia. Isso que me angustia, não sei onde, nem com quem ele está. Esse menino ainda acaba me matando um dia. — Ela lamentou triste.
Eu adoraria dizer que isso fazia parte dos seus adorados dramas, entretanto, eu temia mesmo pela saúde dela. Noites mal dormidas de preocupação incessante e estresse não faziam bem. Eu mais do que ninguém tinha noção do quanto isso afetava o bom funcionamento do sistema nervoso.
— Mãe, o Thiago não é mais criança.
— Mas age como uma. Desde que o Samuel foi embora...
Então houve um silêncio doloroso. O nome do meu pai não era pronunciado havia muito tempo. Eu sabia o quanto era difícil para ela, depois de por amor perdoar todos os terríveis erros do meu pai, ser abandonada à própria sorte.
Logo duas xícaras de café fumegante foram colocados sobre a mesa juntamente com um pote de biscoitos de chocolate. Lanchamos em silêncio sepulcral.
— Vou trabalhar amanhã. — Contei tentando retomar o assunto e ela me olhou inconformada. Seu semblante pareceu carregar ainda mais, acentuando as marcas que o tempo havia esculpido em seu rosto.
— No dia do seu aniversário, minha filha? Isso é um absurdo! Você não pode ir.
— Esqueceu que não sou que escolho os plantões? — Perguntei e ela levantou agitada.
— E além de tudo é natal, não podem te dar uma folga? Será possível?
— Mãe, fica calma! Infelizmente as pessoas precisam de mim no natal também. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso. Sei que não é a melhor notícia do mundo, porém qual o motivo de tanta revolta?
— Ah, Julieta, era para ser sua festa surpresa. — Ela revelou e eu sorri emotiva. — Já tinha até encomendado o bolo.
— Festa surpresa em pleno natal? Eu já disse que a senhora é a melhor mãe do mundo? — Perguntei a abraçando e ela me olhou pesarosa.
— Seria a melhor mãe se eu conseguisse fazer a festa.
— O importante é a intenção. Muito obrigada por se propor a fazer isso. Sei que não estamos numa boa fase...
— Mas vai melhorar, tenho fé em Deus que vai. — Ela falou beijando meu rosto e então ouvimos um barulho na porta que instantaneamente atraiu nossas atenções.
Thiago entrou tropeçando no tapete e eu o olhei incrédula. — Olá, linda família! — Gritou com a voz arrastada e minha mãe cobriu a boca para não xingar em voz alta.
Ele estava bêbado. A minha vontade era de matá-lo friamente, porém fui obrigada a respirar fundo e controlar meu desejo homicida.
— Eu não estou vendo isso. Meu filho, o que você está fazendo da sua vida? — Minha mãe perguntou desolada e eu levantei imediatamente da cadeira.
— Mãe, vai descansar, deixa que eu cuido desse moleque. — Assumi a situação e arrastei Thiago pelo braço como uma criança birrenta que se recusa a sair do lugar, até o banheiro.
— Você não pode me dar banho, não pode me ver pelado. — Ele reclamou praticamente caindo no chão. Eu tirei a camisa dele e a calça mesmo sob protestos ridículos.
— O único risco de te dar banho é de te afogar, seu idiota. — Falei furiosa, abrindo o chuveiro e deixando uma torrente de água fria cair na cabeça dele.
— Isso está gelado! Socorro! Mãe! — Ele gritou e eu abaixei e fiquei na altura do olhar dele.
— Cala a sua boca! Deixa nossa mãe dormir, seu imbecil! Tem noção do quanto ela está cansada? Do quanto ela sofre preocupada com você? Você está acabando com a sua vida. — Falei e ele riu sarcástico. — E com a vida da nossa mãe também.
Thiago parou de rir e encarou os azulejos brancos da parede. Deixei ele ficar debaixo da água por mais algum tempo e então o ajudei a sair. Segui com ele enrolado na toalha e o ajudei a sentar na cama.
— Tomara que você tenha uma péssima ressaca amanhã para compensar a raiva que você está me fazendo. — Praguejei procurando uma roupa no armário. Joguei um pijama na cara dele e segui para a porta. — Se seca, veste a roupa e dorme. — Ordenei saindo possessa do quarto dele.
Fui até a cozinha buscar minha bolsa e notei que minha mãe tinha se recolhido. A pobre devia estar mesmo exausta. Segui para o banheiro e após um banho rápido, fui para meu quarto onde simplesmente não conseguia pregar os olhos. Thiago sempre fora um garoto doce e esperto, entretanto desde o episódio do abandono do pai ele mudou completamente. Se tornou inconsequente, revoltado com tudo e todos. Já Guilherme por outro lado se tornou mais calado, mais reservado com a própria dor.
Meu ódio pelas consequências da atitude de Samuel era visceral, eu tinha tanta aversão à ele que se o encontrasse algum dia era capaz de rejeitá-lo como pai.
Consegui dormir somente quando o dia já estava amanhecendo, ouvi vários sons de notificações de mensagens no celular, entretanto erroneamente ignorei todas.
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Um Clichê Para Julieta
RomanceQuando William Shakespeare escreveu a história de Romeu e Julieta há meio milênio atrás, ele nem sequer imaginava a tradição que estava criando em tais nomes. Tal influência perdura até os dias atuais, principalmente no movimentado hospital de Santa...