Do Fundo ao Raso

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Enquanto lavo o rosto e me reconheço no espelho, sou dominada por uma alegria inexplicável.

Ontem, tive tempo para decorar cada traço do rosto de Nicolae.

O nariz fino, a covinha que se forma quando ele sorri, os lábios bem desenhados que se abrem em um sorriso um pouco torto, charmoso de fazer o coração sair do peito.

A sensação ainda viva do toque de seus lábios nos meus, da firmeza de seus braços, desperta meu corpo de uma forma inesperada.Nunca me senti desta forma. Nunca antes quis alguém dessa forma.

A urgência de vê-lo se mistura a um sentimento indefinível.

Eu ainda mal consigo repetir, em voz alta, que Nicolae é um vampiro.

Por mais incrível que pareça a revelação de Nicolae, eu não estou em dúvida quanto a veracidade de seu segredo. O que me preocupa é que ele me traz a superfície algumas lembranças que eu havia enterrado há muito tempo.

A revelação deste mundo místico ao qual ele pertence me obriga a pensar nas últimas palavras de minha mãe.

Minha mãe, ou Ana Tereza, para quem a conheceu, era uma mulher absolutamente incomum. Seus cabelos loiros emolduravam um rosto de traços fortes e clássicos. Ela era simplesmente maravilhosa. Apesar de chamar todo tipo de atenção, eu nunca vi minha mãe se interessar por namorar, como se me criar e cuidar das pessoas de nossa pequena cidade fosse uma espécie de missão. Ela era a pessoa mais doce do mundo.  

Morávamos em uma cidade pequena, repleta de casas no estilo colonial, isolada na Serra Gaúcha, que mais se parecia com um cenário de outra época. Um pouco como Mystery Spell.

Minha mãe era dona de uma loja de presentes, na qual vendia artesanatos, amuletos e óleos medicinais. Nossa casa sempre cheirava ervas e flores. Na cidade, ela era tratada como uma espécie de curandeira. Apesar de eu jamais ter acreditado em poções e feitiços, era impossível não ser cativada por sua doçura e sabedoria enquanto cuidava das pessoas.

Eles se referiam a ela como se fosse viúva, mas a verdade é que eu não tenho a menor ideia de quem possa ser meu pai. Todas as vezes em que a confrontei sobre o assunto, ela me sorriu tristemente e me repetiu a mesma resposta enigmática.

"Você irá descobrir sozinha quando for a hora"

Mas nossa vida era muito plena para que pudesse sentir falta de uma terceira pessoa. Quando minha mãe adoeceu, ao passo que meu mundo desabou, ela comportou-se placidamente. Ela não concordava com minha inquietação e com minha insatisfação com seu diagnóstico, mas não intervinha. É como se soubesse que fazendo isso, ela estava me encaminhando para meu destino.

Os dias foram roubando suas forças. Aos poucos, a vi perder sua capacidade de andar, de comer e por fim, vi sua voz tornar-se cada vez mais fraca.

As decisões a seguir não foram fáceis.  A vida e a juventude nos ensinam como ganhar. Cada passo, cada esforço no rumo de um objetivo, cada recusa que aceitamos e como nos levantamos novamente, se torna parte de quem somos. 

Entretanto, ninguém nos prepara para a hora de abrir mão. Quando minha mãe recusou-se a ser intubada quando o momento chegasse, eu guardei dentro de mim a decisão de que jamais desrespeitaria sua vontade. Seria um desacato a tudo o que ela era e representava para mim, não cumprir com minha palavra. Estive ao seu lado para dar a coragem que eu nem possuía. Mas ninguém nos ensina a perder algo tão bonito...

O fim do inverno trouxe consigo o fim de seus dias. Eu já sabia o que esperar, mas aceitar o seu fim, e vê-la semiconsciente, apesar de sua expressão serena, me causou uma sensação de impotência sem tamanho.

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