As sombras de dentro

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Os sonhos nos raros momentos de descanso apenas aumentam a minha confusão sobre o que é real. Conto o tempo pelo número das refeições passadas pela fresta da porta. Já estou aqui há mais de dois dias. Nenhuma luz penetra neste ambiente insalubre. O universo parece ter se abreviado à essas quatro paredes de concreto sujo. À cama de estopa, sobre a qual deixo meu corpo pesar. Ao banheiro, onde mantenho o mínimo de privacidade que me resta diante desta câmera, que parece observar até meus pensamentos. E ao espelho, que me mostra imagens que comprovam que estou perdendo o que restou de minha sanidade.

Através de sua moldura, vejo o rosto que se parece tanto comigo. Mas que não sou eu. Seus traços, idênticos à primeira inspeção aos meus, tem uma beleza forjada por uma ferocidade que jamais reconheci em minha própria face. Seus olhos são negros, com íris cintilantes, vermelhas como o fogo. Ela me retorna o olhar, em desafio, com uma voz sibilante que ecoa através de meus pensamentos.

" Aceite-me".

Devo estar perdendo o juízo.

Sinto, depois de ter sido hipnotizada, que não posso mais confiar em meus olhos e em meus ouvidos, então ignoro os apelos dela. A outra Victória. Parecendo tão real à minha frente quanto a frieza destas paredes.  Sei que não há nada além de mim. Apenas o barulho seco da caixa de som preenche o vazio deste ambiente claustrofóbico.

- Vamos, Victória, você não está se esforçando...

Depois de dois dias insistindo em perguntar o que ele deseja de mim, já sei que a resposta não virá.

A voz insiste.

- O que o espelho mostra para você? 

Suspiro, exasperada.

- Você ficaria chocado. – digo, em um tom monótono. – Ele me revelou o final da Caverna do Dragão.

Não consegui pensar em nada mais irritante para dizer. Mas ao invés de responder com fúria, a voz ri, com uma ironia cortante.

- Você é mesmo filha de sua mãe! Brilhante, viva...desafiadora! E completamente incapaz de tomar decisões boas para si mesma!

Não sei se foi a menção à minha mãe ou a estranheza que suas palavras me causaram, mas desta vez ele realmente conseguiu minha atenção. Minha mãe sempre foi a pessoa mais correta, ponderada e colaborativa que eu conheci. Sua fala não faz o menor sentido.

- Isso não soa como minha mãe. Acho que você pegou a garota errada.

A risada fria novamente atravessa a sala.

- Não, Victória. Eu não me enganei. Talvez você devesse considerar a possibilidade que você não conheça a sua mãe. Talvez você não conheça sequer a si mesma.

Abro a boca para protestar e então me calo, refletindo sobre todos os aspectos que deixei escapar. Percebendo uma brecha na muralha de indiferença com a qual tentei me cercar, a voz continua.

- Você pode não compreender a necessidade disso agora, Victória, mas pode ter certeza de que você está aqui para o seu próprio bem! Eu só quero te ajudar!

Definitivamente, só pode ser uma piada de mau gosto.

- Ilumine-me então, mestre Yoda. Com o que possivelmente você acha que eu preciso de ajuda? Eu tenho alguns boletos para vencer, caso queira uma sugestão de por onde começar...

Dessa vez, o tom não é mais bem humorado.

- Admita, Victória. Você sabe do que estou falando. Você sempre se sentiu distante, incompleta, como se nada prendesse você a lugar nenhum. Sua vida começou a mudar quando você veio para Mystery Spell. Finalmente parecia que você sairia da cadeira de espectadora...

O imortal - Is it Love?Onde histórias criam vida. Descubra agora