Capítulo 12

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O professor Hong, que ensina a matéria favorita de Vernon (A Filosofia das Criaturas de Outros Mundos e as Dinâmicas Humanas), nem precisou perder tempo falando sobre isso em sua primeira aula: todos com uma educação decente sabem os nomes de todos os diferentes reinos pertencentes aos outros mundos: New Sheol para os demônios, Grand Aeval para as fadas, Alfheim para os elfos, Melusine para os tritões, e assim por diante. À medida que eles aumentaram as interações com os humanos, o mesmo aconteceu com a passagem de seres humanos e criaturas de outros mundos entre e para seus diferentes reinos. Precisa-se de um trabalho infernal para tirar o passaporte, uma passagem de portal transreal para deixar você passar, e nunca é tão fácil assim para os humanos sentirem-se confortáveis ​​em mundos tão drasticamente diferentes, mas ao menos você consegue ótimos cartões-postais.

A menos que você esteja tentando entrar em New Sheol. Então é simplesmente impossível.

A coisa com o New Sheol é que está, bem, cheia de demônios. E enquanto os goblins ainda possuem uma reputação ruim e os lobisomens são estereotipados do inferno para trás e algumas outras criaturas não são consideradas mais que animais hiperinteligentes, os demônios ainda carregam a pior parte.

Provavelmente tem algo referente ao fato de que, comparados a fadas e elfos e as contrapartes mais humanóides e inteligentes dos outros mundos, eles são os que parecem mais monstruosos. Todos eles estão em uma média entre 1,80 a 2,0 metros de altura, com chifres muito maiores e bem mais ameaçadores que os de Vernon, e presas muito maiores e garras muito mais longas. E se o reino dos demônios é comumente chamado de "Inferno" por quase todos, então você sabe que eles não estão indo muito bem na tentativa de serem mais agradáveis ​​para o resto dos mundos.

É muito provável que Vernon goste muito do professor Hong porque ele não trata demônios como cidadãos de segunda classe ou terroristas disfarçados. E se o fizer, pelo menos ele tem a decência de não expressar isso na frente de uma sala de aula de estudantes universitários impressionáveis. Ele reconhece que, sim, centenas de anos atrás os demônios tinham um pouco de febre conquistadora e não eram amigos de ninguém, mas ele também sempre faz questão de esclarecer que o comportamento das criaturas no passado não necessariamente escava sua sepultura no presente. Vernon se lembra de uma ocasião em que o professor Hong calmamente e pacientemente discordou de um calouro demonofóbico de psicologia, apontando tudo o que demônios fizeram sozinhos para humanos nos últimos cinquenta anos: reduzindo o tempo de construção de prédios e estradas com sua força e habilidades superiores, compartilhando livremente seu cultivado conhecimento de medicina e pesquisa com cientistas de todo o mundo, e até mesmo formando pequenos grupos militantes em favor da paz para a Organização das Nações Unidas Universal apesar de não terem sequer um assento nela.

"Enquanto demônios vêm dando tudo de si para compensar o comportamento de seus ancestrais de oito séculos atrás," o professor Hong havia dito, "você não acha que é um pouco injusto com eles a continuarem sendo impedidos de entrar no reino humano e a serem tratados como monstros?"

Naquele dia, de seu assento na fileira de trás, Vernon observou alguns estudantes mexerem-se desconfortavelmente em seus assentos. Daquele dia em diante, ele fez um esforço para se sentar um pouco mais perto da fila da frente toda aula.

O professor Hong encerrou a aula alguns minutos mais cedo hoje para poder falar sobre o trabalho que seria passado. Vernon deu uma lida pela lista de tópicos na noite anterior e ainda estava indeciso sobre qual deles deveria escolher. A escolha mais fácil seria obviamente uma relacionada à cultura demoníaca, mas a verdade é que ele não tem muita certeza de quão perto está dela. O problema de ser um híbrido é que você está no Purgatório, limbo, um meio-termo estranho que existe entre dois lugares. Ele é o ponto central em um diagrama de Venn, a sobreposição de ambos os círculos que é sua própria pequena categoria e não é tecnicamente parte de qualquer outra coisa. Ele nunca será aceito como humano com suas feições demoníacas, mas também não sabe quase nada sobre a cultura demoníaca para poder aceitar a si mesmo ou ser aceito como um deles. Ele faz parte dos dois mundos e não se identifica com nenhum deles, e o pensamento de que agora ele deverá entrar em New Sheol e descobrir este lado de si mesmo que ele nunca teve a chance de aprender o aterroriza.

Quando a turma é dispensada, Vernon inspira um pequeno sopro de ar fresco filtrado por sua máscara, depois caminhando até a plataforma elevada na frente da sala de aula. O professor Hong era bem jovem para ser professor universitário, e parecia ainda mais jovem devido aos olhos grandes, lábios carnudos e traços esguios e delicados. O que Vernon mais gosta nele, entretanto, é a maneira como ele faz um penteado novo no cabelo todos os dias — na moda, mas nada selvagem — e os piercings incomuns em suas orelhas. Ele os mantém simples, um em forma de cruz na cartilagem e outro na helix, mas de perto se torna muito mais evidente que ele possui inúmeros outros piercings em vários lugares que ele precisa retirar devido a motivos profissionais.

O professor Hong vira a cabeça, finalmente notando que Vernon estava ali.

"Olá," ele diz com um sorriso calmo. Ele é sempre tão sereno, todo cetim sedoso e jazz tocando em aparelhos de som caros, ondas fracas em águas paradas e espelhadas, uma voz que soa como se pudesse ler histórias de ninar para crianças todas as noites. "O que posso fazer por você?"

Vernon trava por uma fração de segundos, mas consegue tropeçar um "Eu tenho algumas perguntas sobre o trabalho, senhor."

O professor Hong percebe a maneira estranha que a boca dele se move atrás da máscara enquanto fala, mas não comenta nada. "Prossiga."

"Estou realmente em conflito sobre qual tema escolher. Digo, sinto que deveria escolher o que fala sobre a ética em negar cidadania a demônios, porque sinto que posso falar muito sobre o assunto, mas eu não- quero dizer, não tenho certeza se eu-"

"Está tudo bem," diz o professor Hong suavemente, observando a maneira como Vernon continua gaguejando e parando como um novo motorista aprendendo a mudar de marcha. "Por que você 'sente' como se precisasse escolher um dos tópicos demoníacos?"

Vernon pigarrea e encara os pés. Vai ser um saco se o professor vir a se revelar um secreto demonofóbico. "Meu pai é um demônio," ele murmura, a voz quase inaudível na sala de aula, ecoando e esvaziando, enquanto os alunos saem. "Ele está sumido há mais de dez anos. Trabalha em New Sheol, tentando conseguir sua cidadania para vir morar conosco. Mas já se passaram anos, e não é como se ele tenha antecedentes criminais ou algo assim- ele é a porra de um professor de matemática, pelo amor- desculpe por xingar, senhor."

O professor Hong ri baixinho, e seus olhos estão tudo, menos enojados quando observa a pele rachada de Vernon e os relevos irregulares que disfarçam seus chifres e presas, além da leve coloração vermelha de seus olhos por trás de seus óculos escuros. Compadecido, ele diz: "O tópico do trabalho é inteiramente sua escolha. Se você sente que não ficará confortável escrevendo sobre demônios, pode sempre escolher outro tópico. No entanto, gostaria de lhe dar minha opinião genuína e honesta sobre o assunto: se mantenha no que é de maior importância para você."

"Como assim?"

"Os melhores trabalhos escritos em qualquer curso universitário são os em que os alunos realmente sentem algo sobre suas pesquisas, não os em que só escrevem qualquer coisa para conseguirem uma boa nota. E isso é ainda mais prevalente em um curso de filosofia como este. Não há resposta certa na filosofia; há apenas fatos, e o quão bem você usa esses fatos para explicar a sua tese." E ele parece quase curioso, realmente, mas não de maneira cientista-maluco-olhando-para-o-monstro-Frankeinstein. Mais como se ele estivesse curioso sobre o que Vernon tem a dizer, sobre o que ele pode fazer. "Eu tenho que admitir, eu ficaria muito interessado em ouvir seus argumentos a respeito de certas leis humanas envolvendo demônios. Qual é o seu nome?"

"Chwe Vernon. Sou calouro em Humanidades."

"Pois bem, Vernon, venha me ver durante meu horário de almoço, me dê o seu ou envie a mim um e-mail caso precise falar mais sobre isso. Ficarei feliz em ajudar." Ele recolhe seus papéis e começa a se afastar, antes de parar e adicionar: "Ah, mais uma coisa. Se você vir a escolher esse tópico no fim das contas, eu recomendo você a dar uma olhada no caso de Dowager v. Humanity de 1981. Você encontrará bastante informação para ajudar sua futura tese."

E Vernon não pode evitar que um sorrisinho incrédulo se espalhe por seu rosto enquanto observa o professor Hong sair pela porta lateral para ir dar sua próxima aula. Ele não pode acreditar que não só recebeu conselhos, mas uma dica, de seu professor favorito. Isso é loucura.

IN THE EYE OF THE BEHOLDEROnde histórias criam vida. Descubra agora