Prólogo

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Três dias antes da tempestade...

Quando voltou a si, o fogão a lenha ainda ardia no grande interior caçapavano, a casa exalava um cheiro misto de ferro e brasa, as panelas sobre o fogo chiavam, há muito secas. A garota ainda estava em seu colo, ou pelo menos o que restara dela. A destra a envolvia pela cintura enquanto a outra tombava desconsolada sob o machado.

Aquele gosto férreo de sangue atiçava-lhe as papilas, o torpor e a sonolência ainda se faziam presentes, e não foi necessário esforço algum para conter quaisquer reações brutas. Calmamente, Vicente se levantou, deixando que o corpo frouxo da filha batesse seco contra o chão, revelando uma segunda boca onde antes era a garganta e uma terceira ainda maior sobre o abdome.

Aos tropeços, o homem foi até a porta, pisoteando a menina uma ou duas vezes, enquanto pendulava o machado firmemente encaixado na mão esquerda. A bombacha empapada de sangue gotejava sobre o piso de madeira do velho chalé. Ele abriu a trinca num estalido, e sentiu a nuca arrepiar quando o pé descalço tocou o orvalho.

— Aquela não era minha guria... – disse, fitando o alaranjar do horizonte.

De soslaio ele viu o vulto que se arrastava para a lateral da casa. Ele se pôs a andar de forma ébria.

— E tu nunca foi minha senhora!

A mulher tentou correr com os braços, soluçando desespero em seu pranto, mas o corpo ainda estava preso as pesadas pernas que foram retorcidas pelo marido durante a madrugada. Vicente cambaleou até ela, pendulando o machado, usando de cada pisada no orvalho como se fosse um safanão de água no rosto.

Ele esfregou a face de cima a baixo, contendo as lágrimas teimosas que insistiam em cair. Aquele não era o momento para sentir aquela dor, sua real família clamava por ajuda e ele precisava agir, antes que aquilo também o possuísse.

— Tchê! Tu não é minha senhora! – Gritou o homem, afastando a dor do que estava prestes a fazer.

O pé do roceiro subiu, pairando sobre a cabeça da mulher e, quando desceu, desferiu uma força desproporcional ao estado em que o homem se encontrava. Nariz, boca e olhos foram enterrados no solo úmido, mas isso não fora o suficiente para calar os gemidos desesperados. Os braços da mulher se debatiam, os dedos arranhavam a grama, as pernas retorcidas e ensanguentadas tremulavam a esmo.

Com auxílio da gravidade, o machado na mão do gaúcho escorregou e assumiu a posição de uso, os dedos apertaram o machado até os nós branquearem. Os lábios sussurraram:

— Nem a pau que é.

E então o homem subiu o machado, sentindo a dor descer-lhe em cascatas pelo rosto. Ainda fixando a vítima sob seus pés, esperou um segundo, coçou o peito desnudo com a outra mão, sentindo a face distorcer com a dor do que estava por fazer, e tornou a descê-lo contra o pescoço da vítima. O som de osso partindo e carne rasgando foi breve, assim como o afrouxamento do corpo embaixo de seu pé. A cabeça da mulher rolou para a vala que fora forjada durante anos pela chuva.

— Não são minha família... não são...

Entregando-se a um choro contido, o homem de olhos cerrados, carregou a arma do crime para longe da vítima, sentou na soleira da porta e assistiu ao nascer do sol.

Enquanto um guizo de serpente se fazia audível, o homem pensou ter visto uma figura alva indo em direção ao parreiral. Desconsolado e com profundas olheiras negras, ele pôs o machado em cima do colo e recostou a cabeça no batente da porta, entregando-se a uma gargalhada chorosa e desesperada.

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GLOSSÁRIO


bombacha: Espécie de calça larga com abotoaduras no tornozelo, usada comumente pelos gaúchos, trata-se de uma das peças da pilcha (traje tradicional gaúcho)

chalé: Casa de madeira ou casa velha, comumente encontrada no interior.

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Fonte: 

"O dicionário Gaúcho", encontrado em Wikipampa.blogspot.com

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