IX

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A grande serpente recolheu-se de volta ao riacho, enquanto a figura branca se recompunha na margem que, agora, era beijada por águas turvas. A chuva havia ensopado os cabelos longos da criatura que, ainda em êxtase, puxava uma das mechas que lhe havia entrado na boca.

A figura branca esperou até que o seu irmão surgisse novamente das águas, e não pôde conter a gargalhada quando viu a carne do assassino do machado, despontar ao fundo. O corpo do homem marchava para fora, arrastando a velha e o artista pelos cabelos. O sangue que antes sujara a bombacha, agora assumia manchas espalhafatosas, negras, borradas pelas águas da Cascata do Salso.

— Ora, irmão! Por que vestistes a carne putrefata deste homem?

O que antes fora o assassino do machado, chegou até a margem, encarando a criatura alva com olhos raivosos, largando no chão os dois corpos que trazia.

— Tua petulância nunca finda, não é, irmão? Esqueces que tu és o único que não foi amaldiçoado com a carne de nosso pai?

— Esquecer que minha carne é como a carne da mamãe? – disse, gargalhando – Não me esqueço, irmão... Vós nunca me deixastes esquecer...

— Porque enquanto berrávamos de dor, neste mundo pútrido, Tu e nossa mãe caminháveis livres pelas matas, divertindo-se com as criancinhas. – Fez uma pausa, antes de se aproximar. – Tu nunca entenderás a dor dos que não são feitos de carne e osso. Este mundo podre... – Girou os olhos pelo local. – Não foi feito para seres como nós.

"Tenho que confessar, irmão. Embora tu tenhas esta aparência desagradável, parece que a carne de nossa mãe te conferiu um bom poder... Eu posso ver o que esta alma sentia... Se eu não fosse quem sou, também sucumbiria aos teus encantos, por mais pueril que eles sejam."

— Passei muito tempo por aqui, meu irmão, e consegui aprender algumas coisas com a criação... – Tocou a ponta do cajado na testa do antigo gaucho. – Eles criaram algo que se chama livro. Uma vez, uma das criaturas, chamada de Stephen King, que fazem esse tipo de... – Buscou a melhor palavra. – Magia... disse que todos nós, monstros, somos reais, e que vivemos dentro de cada uma dessas... coisas... – Apontou o cajado para os corpos no chão. – E que às vezes, nós vencemos! – Gargalhou novamente, saltitando sobre a pedra. – Até cogitei que este mortal, talvez conhecesse a nossa bruxa!

— Hum... Não estou interessado, irmão... Não me importo com essas criaturas. Tenho urgência em terminar com o que fomos convocados para fazer.

A figura branca afastou novamente os cabelos molhados do rosto, enquanto sacudia ombros e cajado em uma gargalhada afetada.

— Oh, irmão! – disse, pondo a mão no ombro do que antes fora o gaúcho, fitando seus olhos – Tu não sabes o quanto esse ódio todo me fez falta.

O rosto de Vicente abriu a boca em um grito, fazendo com que a pele recuasse para cima dos olhos, revelando um bico de papagaio empapado pelo sangue daquela pobre carne. O líquido rubro, respingando sobre a cara ensopada do irmão mais novo, criou manchas abstratas antes que a forte chuva o lavasse.

Quando fechou o bico, a carne, magicamente, retornou a seu estado inicial, cobrindo a aparência do monstro, retirando o único traço de humanidade que restara. No lugar de gigantescas ires azuis, olhos profundos de escleras aquáticas surgiram.

— A eternidade era quieta demais sem tua petulância, meu irmão.

A figura branca puxou o irmão para um abraço, gargalhando alto, sacudindo seu cajado para que o som do guizo caminhasse pela terra, e ela, recebesse a notícia de que dois dos irmãos haviam se levantado.

— Tu sabes que ainda há muito trabalho pela frente, não é?

A cabeça do assassino do machado meneou.

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