XII

29 2 25
                                    

Enquanto Geovana vasculhava o hospital com sua lanterna-papagaio, procurando utensílios úteis para a viagem, Elton e Lucélia conferiam os frascos de soro hidratante misturados com calmante, repondo-os para garantir que todos os pacientes ficassem ao menos deitados até que voltassem com ajuda. O celular do médico estava escorado no rodapé, jogando a luz da lanterna para o teto, iluminando de forma precária o trabalho que faziam.

Quase todos foram contidos, Elton acreditava que não teriam problemas já que o calmante era potente, mas algo o estava preocupando. O próprio cansaço havia sumido e ele pôde jurar que havia uma cascavel pronta para o bote, ressoando seu chocalho pelo hospital. O som ininterrupto preenchia sua mente com puro pavor. Lembrava-se de perguntar três ou quatro vezes para a enfermeira se ela não ouvira aquele som. Na primeira ela afirmou tê-lo ouvido antes, mas não agora.

— Esse é o último – disse a enfermeira – e acho que vamos precisar de mais na volta.

Elton foi arrancado de suas preocupações e jogado em outra. Ele encarou a enfermeira. Estava um pouco surpreso, não conseguindo conceber a ideia. As provisões deveriam durar até o fim do mês.

— Mas deu pra todos?

— Sim, mas a gente só deve ter uns três ou quatro no estoque.

Elton calculou o tempo que levaria até o fim dos medicamentos que acabaram de colocar. Se saíssem em meia hora ainda durariam até que voltassem de Santa Maria.

— Tchê, a gente pega no HUSM. Duvido que eles vão negar ajuda.

— Certo, Elton, mas tô pensando numa coisa aqui. Como a gente vai de baixo dessa chuva, homem?

— Com o Chevette, eu só tenho que encher o tanque. Ele tá parado na lomba aqui do lado, então a gente vai ter que se molhar um pouco.

Elton nunca fora ligado em carros antigos, mas em Caçapava do Sul, aquele era o carro mais fácil e barato de se comprar, além da facilidade na manutenção. Por conta da quantidade de carros, supunha, raramente não encontrava peças a pronta entrega e todo mecânico ao qual confiava seu carro fazia um excelente trabalho. Para um médico, plantonista, cuja vida era basicamente baseada em ligações emergenciais, aquele carro era a melhor escolha. Mesmo não gostando de carros antigos, adquirira certo apego por aquela lataria verde. Talvez precisasse vende-lo quando finalmente conseguisse alcançar o objetivo das salas de aula, mas não sabia dizer se teria coragem.

— Elton! – Chamou a enfermeira estalando os dedos na frente do rosto do homem – Tu tá bem, tchê?

Elton consentiu, cruzando os braços, voltando o olhar para o chão, mentindo. Ele fora novamente arrancado de seus devaneios. Sabia que mentia. Há algum tempo andava distraído, com dificuldade de se concentrar e sabia que aquilo se devia ao cansaço. Sabia também que sua recente disposição se devia justamente as noites mal dormidas. Ele era médico, sabia do que se passava no próprio corpo, no entanto temia que estivesse errado. Temia que aqueles fossem os primeiros sintomas da desconhecida doença que tentava tratar.

Outra luz iluminou o ambiente, obrigando Elton a levar uma das mãos para frente dos olhos. Geovana apareceu à porta, e Lucélia pôde ver o medo que ela sentiu ao encarar sua preocupação. As profundas olheiras não emolduravam apenas os olhos dos pacientes. Os três componentes da equipe estavam daquela forma e mesmo que aquilo fosse por conta do trabalho, a enfermeira Lucélia soube que Geovana se sentia incomodada.

As mãos esguias seguravam firme as duas mochilas com o papagaio pendendo junto a alça de uma delas. Se o hospital estava abarrotado daquela forma e a polícia resolvera manter em sigilo tudo o que acontecia dentro de suas paredes, Geovana suspeitava que poderiam encontrar mais casos durante o caminho, então escolhera colocar todas as provisões que pudessem ser úteis a qualquer um que encontrassem. A obrigação falava mais alto que a razão nesses momentos. Tivera sorte de fazer parte de uma equipe tão dedicada quanto àquela.

3 DIASOnde histórias criam vida. Descubra agora