XV

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A figura alva caminhava ao lado do que antes fora Vicente. Ambas criaturas se banhavam com a tormenta, se aproximando cada vez mais do seu próximo objetivo. Os corpos dos quatro jovens seguiam a frente, liderados pela velha e pelo artista de olhos revirados. A criatura esguia batia seu cajado sobre a terra a cada passo dado, deixando que uma música infantil fosse cantarolada por seus lábios. O corpo que antes fora de Vicente, apertava os olhos aquosos, resmungando com fervor.

— Tu não podes fechar esta maldita boca, irmão? – disse, não suportando a raiva.

A criatura o encarou, batendo o cajado três vezes no chão, obrigando o rebanho de seis corpos a estacar.

— Tu és um estraga prazeres, irmão – disse. – Sabes a quantas luas espero por este dia? Para ver seu bico rabugento?

Os olhos aquosos encararam a figura branca, deixando que os lábios subissem e revelassem a podridão que tomava a gengiva.

— E tu não conseguiste conversar com ninguém durante esse tempo?

O cajado balançou quando a criatura gargalhou, espalhando o som do chocalho pela mata que envolvia a trilha.

— Quarenta e nove anos, meu irmão. Quarenta e nove anos esperando que a maldição se cumprisse, sem me dar ao luxo de brincar com nenhuma das criaturas. Tu tens alguma ideia de como estou feliz em finalmente abrir a boca?

A antiga boca de Vicente se abriu em um gargalhar prolongado, obrigando a criatura que ali habitava a se debruçar sobre os joelhos, buscando um ar que não precisava.

— Perdoe-me, irmão, mas preferia que sua tristeza estivesse presente. Sinto falta do silêncio.

A figura alva tornou a bater o cajado no chão e, magicamente, o rebanho de seis corpos retomou a caminhada, com a criatura logo atrás.

Não demorou até que o monstro sob a pele do gaúcho notasse o que havia feito. O irmão do meio sempre fora o mais sentimental, tão diferente dos outros. Talvez uma personalidade herdada da mãe.

— Não entendo como tu podes ser tão grande apreciador do silêncio, irmão. Se os milênios que passou mergulhado no mais puro nada, não foram uma lição valorosa o bastante, me pergunto o que realmente desejas para ti?

O antigo corpo de Vicente se adiantou para o lado da figura alva, crivando-lhe o cenho com olhos aquosos, retendo o sorriso maldoso que pretendia lançar.

— Desculpe pelo infeliz comentário, irmão, mas acredito que tu tiveras tempo para digerir o silêncio. O nada é simplesmente o nada.

— Tu estás certo, meu tão odioso irmão. Tu estás certo. – Assentiu. – Tu terás o vosso silêncio, assim que libertarmos o nosso Pai, mas até lá, não tentes me enfurecer. – Parou em frente às rochas que levavam a profunda caverna.

A criatura do cajado caminhou até a dupla que liderava o grupo de corpos. Sorrindo-lhes, bateu o cajado três vezes no chão lamacento e ordenou que caminhassem para dentro da rocha.

O antigo gaúcho cruzou os braços, encarando com seus olhos aquosos a escuridão que brotava da caverna. Não havia compreendido a profecia, mas agora, vendo a escuridão, ele compreendia muito bem. Os humanos, não eram capazes de compreender o amago do divino. Ele mesmo não esperava tal força do irmão mais velho. Um sorriso espocou no antigo rosto do gaúcho, crescendo, até que se tornasse em uma gargalhada, jogando a pele para além da testa. A gargalhada assumiu tons de grazinado, avançando para dentro da caverna e reverberando pela mata até alcançar os céus e subjugar os trovões.

— Para que tanta felicidade, irmão? – Perguntou o outro, atiçando o ouvido com o mindinho.

A cabeça de Vicente virou para a figura alva, antes que a carne tornasse a colar nos ossos. Quando a carne colou, um sorriso demoníaco ainda deixava visível as gengivas escuras.

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