XI

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A bateria do celular finalmente findou, despertando a engenhosidade de Geovana, que improvisou uma lanterna, deixando que o celular escorregasse para dentro de um papagaio hospitalar. O foco de luz ia longe, até o final do corredor, e o excesso de luz auxiliou os dois colegas que se contorciam pelo ferro destorcido da ambulância, tentando alcançar o corpo do motorista.

Logo na primeira tentativa, Elton desistira de resgatar o que sobrara do recepcionista. Jamais tirariam os escombros sozinhos.

O braço de Geovana ainda latejava. Não podia dizer o que sucedeu depois que havia caído no sono, não podia dizer exatamente por que acabara de ajudar os companheiros de trabalho a conter o maior número possível de pacientes. Também não sabia por que eram eles quem tentavam resgatar os corpos na recepção. Geovana sabia apenas de uma coisa: O medo que emanava do médico era algo além do palpável, quase incisivo, como se fosse capaz de furar e se apossar da alma.

O papagaio na mão de Geovana, guiava a luz para o para-brisa estilhaçado da ambulância, a tensão comendo-lhe viva por causa da posição em que estava. Não tinha muito espaço, e mesmo que o pequeno mictório operasse milagres com a pouca luz que tinham, as trevas amontoadas entre os escombros dificultavam a propagação da luz, fazendo ainda mais sombras.

— Cuida, Lucélia! – disse, Geovana, vendo Lucélia se esgueirar pelas ferragens – Tu tá com a cabeça bem debaixo d'uma ponta.

Lucélia levantou os olhos, recuando a cabeça para trás, praguejando o sumiço de Luiz. Se ele estivesse ali, provavelmente ela estaria deitada na cama, deixando os pés descansarem, enquanto se empanturrava de pipoca e tomava mate, acompanhada de um novo episódio de True Detective. Ela desviou a cabeça do pedaço de metal e chegou até o motorista, evitando olhar para o abdome do homem. Não precisava de mais uma cena daquelas cravada em sua mente, ainda mais agora, amparada por uma luz tão efêmera quanto aquela. Há meia luz, o sangue se tornava rubro-negro, e quando aquela cor se misturava aos azuis do uniforme, dava a impressão de que que a escuridão estava comendo o corpo de dentro para fora. Definitivamente, ela não precisava de uma cena dessas agora, não depois do que passara na enfermaria.

Elton aguardava ao lado da cabine do motorista, a mercê da chuva que caia ao lado de fora e do vento que soprava um fino véu úmido sobre seu cabelo. Ele tentara abrir aquela porta, tentara quebrar o vidro, mas nada surtiu o efeito desejado. Agora tinha que aguardar a pequena enfermeira alcançar o pino da porta. Depois de muito tentar ele viu a simplicidade do que tinha acontecido.

Lucélia se esgueirou mais, fechando os olhos quando passou pela cabeça tombada do homem morto. Ela nunca sentira tanto medo de um defunto antes, estava acostumada a lidar com gente em pior estado e viva, o que na sua opinião era algo bem pior, mas depois de tudo que vira, tinha quase certeza de que aquele homem iria se levantar a qualquer momento. A enfermeira sentiu os dedos roçarem o pino da porta e o puxou num estalido.

Geovana assistia a tudo, segurando firmemente o papagaio, tentando ao máximo manter o melhor ângulo que encontrara. O ferimento ainda latejava e pior que isso, o semblante de pavor sustentado pelo médico a preocupava. Ela odiava estar perto de pessoas naquelas condições. Tinha uma cicatriz enorme nas costas como justificativa.

Elton enfiou a mão no trinco, sacudindo a porta, forçando o pouco metal que se amaçou com o impacto. Ele respirou, apoiando o pé na lateral da ambulância, usando todos os músculos que pôde ativar.

Lucélia se afastou, encarando os cabelos do médico do outro lado da janela, mas por um segundo, deixou que os olhos escorregassem um pouco mais abaixo, justamente para onde não queria olhar. A escuridão estava ali, devorando aquele homem de dentro para fora. A enfermeira levou a mão à boca, fechando os olhos, apertando-os.

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