A chama do isqueiro brilhou no ar úmido. Pela primeira vez, Ludwig agradeceu por manter o utensílio no bolso, mesmo depois de tantos anos longe do vício.
A meia luz, Gaya se arrastou para perto da irmã, vendo o grande vulto de Claudio a sua frente. Ele tirava a jaqueta ensopada, sacudindo-a para se livrar dos estilhaços. Podia ver, com crescente preocupação, aquela estranha coloração rubro-negra descendo pela narina da irmã.
Claudio caminhou para perto das meninas, desatando o lenço vermelho que carregava tão orgulhosamente no pescoço, estendendo-o para a castanha que o pegou com uma pequena reverência.
Sentindo a irmã limpar-lhe o sangue, Amora tremeu de leve. Ninguém vira o que ela viu naquela escuridão. Ninguém vira a face carbonizada que avançava com o sorriso escarnado, ninguém sentira o ódio se expandindo no ar, crescendo, contaminando cimento, piche, madeira, cobre e água. Ninguém parecia ter sentido a mesma coisa que ela.
A respiração de Amora ainda estava descompassada, e pior, contaminava a calmaria de Gaya. Até mesmo Claudio sentia a ligação sobrenatural das irmãs.
Ludwig girou nos calcanhares, deixando o isqueiro apagar por um momento. A roda de pedra começava a esquentar seu polegar. Ouviu um gritinho escapulir dos lábios da loira quando a escuridão tomou o lugar. Ele estava com medo. Nunca sentira tanto medo em sua vida, nem mesmo quando ficara sob a mira de uma arma. O polegar voltou a escorregar pela pedra e o investigador inclinou a chama para o interior da delegacia. Podia ouvir a chuva despencando ao lado de fora, da mesma forma que ouvia respingando no piso, em todas as direções.
— Ludwig – Chamou, Claudio – Cadê os guri?
O calvo voltou a girar nos calcanhares, direcionando a chama para o rosto do investigador. Pela primeira vez em sua vida, Ludwig viu pavor nos olhos de Claudio, não o tipo de medo raso em que alguém se enfiava e logo conseguia escapar. Aquilo era mais profundo. Mais visceral.
Claudio viu surpresa surgindo nos olhos do parceiro, migrando rapidamente para confusão, mas a última foi interrompida logo. A chama desapareceu novamente, jogando todos de volta na escuridão. Claudio ouviu o som dos próprios sapatos quando se mexeu, inquieto. Um som molhado. Também ouvira o som de um chocalho vindo dos fundos da delegacia. O mesmo som que ouvira antes de atirar em Adilson.
A chama brilhou novamente, desta vez dando abertura ao rosto choroso, quase controlado de Amora. Gaya notou os lábios da irmã se mexendo e aproximou um ouvido, quase o colando na boca da irmã. Poucos segundos se passaram quando Gaya se afastou. Olhos arregalados. Incredulidade. Ela voltou a encostar o ouvido na boca da irmã, fechando os olhos e ouvindo com o máximo de atenção que podia, tentando ignorar o mundo que desabava lá fora. A escuridão recaiu, concentrando todos os esforços da castanha no sussurro da loira. Não pôde ouvir muito, mas o que ouviu a deixou assustada.
— ...E quando o primeiro despertar, das profundezas virá a Escuridão...
Mesmo temerosa, Gaya pousou a mão na testa da irmã. Estava ardendo em febre. Os olhos se voltaram para onde vira Claudio pela última vez. Num riscar de metal e pedra, Ludwig reascendeu a chama. O investigador ainda estava ali, parado, mas parecia rastrear algo onde a luz não alcançava, ao mesmo tempo que parecia sentir o olhar da castanha sobre si.
O som da cascavel estava aumentando e tinha algo saindo da boca de Amora. Claudio podia sentir o olhar penoso de Gaya o encarando, entretanto, seu instinto guiava sua atenção para além de Ludwig, para a parede ao fundo, dentro de uma das salas, onde a luz não alcançava.
— Ludwig... – Sussurrou. – Mira o avil pr'aquele canto.
O calvo sentiu os poucos fios eriçando. Comumente odiava aquele tom de sussurro, mas quando vinha de Claudio a coisa era pior. Seu parceiro não era o tipo de pessoa que sussurrava. Muito pelo contrário. O gigantesco investigador falava em alto e bom som como todo grande líder, até mesmo durante as abordagens. Claudio não era o tipo de pessoa que se submetia a insegurança de um sussurro, mas se ele estava assim, algo extremo estava prestes a acontecer.

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HororOBRA VENCEDORA DO WATTYS 2019 - CATEGORIA TERROR PARANORMAL Depois que uma terrível tempestade isolou a cidade de Caçapava do Sul, a população foi acometida por uma intensa insônia, enquanto a polícia investigava uma série de estranhos assassinatos...