***Capítulo 1***

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O som do tic-tac daquele relógio de parede no consultório da Doutora Fernanda Diaz, parecia bem mais alto do que eu lembrava. Era nossa terceira consulta psicoterapêutica, e mais uma vez, eu não sabia o que falar.
O silêncio era um pouco constrangedor, ainda mais estando uma de frente para a outra e ela me olhando com aqueles olhos castanhos atraentes, sempre esperando que eu falasse alguma coisa.
Aconcheguei mais na poltrona marrom que estava sentada, passando as mãos suadas no jeans que estava usando, costumava fazer muito isso quando estava nervosa.
- Nosso tempo está quase acabando. - Informou Dra. Diaz quebrando o gelo, olhando para a tela do notebook em sua mesa
Na primeira vez que estive ali, foi fácil falar sobre tudo o que havia acontecido comigo, me sentia tão sufocada que acho que apenas “vomitei” as palavras em cima dela. Agora...
- Você tem tomado suas medicações diariamente? - perguntou ela, tentando continuar com a conversa
- Sim, - consegui responder meio rouca - Vivian não me deixa esquecer.
Vivian era mulher do meu irmão mais velho, desde que fui morar com eles, ela tem sido como uma mãe para mim, sempre preocupada com minha saúde.
- Isso é bom, - continuou ela - e como estão os seus estudos em casa?
- Estou indo bem, - respondi, olhando para a mesa onde o notebook dela estava - acho que consigo terminar o supletivo antes do próximo ano começar.
Ela acenou positivamente com a cabeça, digitando algo em seu notebook.
- E sua readaptação? – perguntou ela me olhando sobre o óculos redondo – Como está sendo?
- Está... - respondi com uma pausa, pensando em como estava sendo estar com minha família de novo, mas como não consegui pensar em nada, continuei – Está "normal", eu acho.
Ela suspirou como se estivesse um pouco desapontada e levantou em seguida.
- Nosso tempo acabou, - informou ela – você já tem outra consulta marcada, certo?
Levantei afirmando.
- Espero que essa seja uma boa semana para você. – disse ela sorrindo, enquanto abria a porta do consultório – Até a próxima.
- Até a próxima semana doutora.

Entrei no Renault Logan vermelho de Vivian sem olhar para ela e coloquei o cinto de segurança. Como de costume, eu passava o caminho todo olhando para fora da janela, olhando as paisagens e nisso eu acabei vendo o meu reflexo no retrovisor lateral do carro.
Isso me fez lembrar do dia que voltei para casa.

Era primeiro de novembro de 2016, fazia sol naquela manhã de segunda-feira, meu reflexo no vidro da janela daquele Chevrolet Classic cinza da assistente social, mostrava uma garota muito parecida comigo, ela usava um óculos de grau retangular preto, os cabelos lisos castanhos amarrados de lado fazia a franja cobrir um pouco os olhos cor de mel, que pareciam brilhar com os raios de sol que penetravam no vidro transparente.
Aquele reflexo sorria, coisa que eu acho que já não fazia desde o acidente de carro onde vi meus pais morrerem e onde eu acabei me perdendo do resto de minha família.
Passei a mão no vidro sobre aquela imagem, e acabei vendo meu real reflexo nele.
Meu cabelo curto tipo undercut estava bagunçado, não havia nenhum óculos e meus olhos estavam com olheiras de quem não dormia bem há muito tempo. 
Eu estava bastante nervosa, com medo, minhas mãos finas estavam suadas e frias, e isso me fez passar muito elas no jeans que eu estava usando.
Observei o caminho informado no GPS no painel do carro dela e percebi que estávamos próximos de chegar ao nosso destino. Voltei a olhar para fora da janela e de longe eu consegui vê-los.
John, meu irmão mais velho como era militar, estava com a farda do exército, ele era alto, loiro, forte, lembrava um pouco o capitão américa. Já Peter, meu irmão gêmeo, estava bem diferente de mim, já não parecíamos mais tão gêmeos assim, porque agora ele estava loiro igual a John, e parecia estar bem malhado. E junto deles, estava a mulher de John; Vivian. Tão linda quanto meu irmão, os cabelos ruivos dela balançavam ao vento como chamas.
Era uma família muito linda, e isso me deixou com mais medo de voltar pra vida deles.
Eles moravam numa casa em um condomínio aberto onde passavam ônibus e as casas eram todas parecidas. Algumas tinham enfeites de mais e outras de menos, uma parecia um circo com tanto troço no gramado, outras pareciam a casa dos sete anões; era repleta de anões de barro pelo gramado, e a de John era uma das mais simples. Tinha uma garagem, algumas plantas próximas a varanda, a grama era muito verde e lembrava aquelas casas de filmes americanos.
Quando finalmente paramos o carro, a assistente social desceu e abriu a porta para mim, desci meio sem jeito e pude ouvir meus irmãos chorando, caminhei um pouco indo na direção deles com a cabeça baixa, e fui surpreendida por Peter, que não conseguiu se conter e me abraçou antes da assistente social falar com eles.
Aquilo me fez congelar, meu coração acelerou e pude sentir minhas mãos suando mais do que já estavam. Eu estava sentindo um medo tremendo dele, dava pra sentir minhas veias latejando feito loucas e a falta de ar, era quase como uma tortura para mim, assim que assistente social percebeu, ela fez um gesto para que tirassem ele de perto, e foi exatamente o que fizeram. John se aproximou dele e segurou em seu ombro, ao ver o meu rosto pálido ele se afastou um pouco e acabei passando as mãos suadas na calça jeans de novo, eu fazia muito isso quando estava nervosa, era tipo um “Toc – transtorno obsessivo-compulsivo” que eu havia adquirido com o tempo. Tentei me concentrar em minha respiração contando até 6 como a médica havia me dito para fazer nesses casos, e aos poucos fui me acalmando.

Entramos na casa deles em seguida, e nos sentamos no sofá. John e Vivian começaram a conversar com a assistente social, lendo e assinando papéis, e tudo o que eu conseguia fazer, era ficar olhando a minha volta. Peter fez um gesto de como quem queria me mostrar os lugares, e mesmo receosa, eu levantei do sofá e o acompanhei.
A casa era bem bonita, tinha dois andares onde a sala e a cozinha americana ficavam no andar de baixo e em cima, os quartos. Subimos a escada e no final dela, tinha quatro portas, duas em cada lado de frente uma da outra.
Peter abriu a porta do primeiro quarto a direita e fez um gesto com a cabeça para que eu entrasse, o quarto era muito bonito. A janela tinha uma vista linda para um jardim que tinha na casa ao lado. Tinha tudo o que uma pessoa precisava; um espaço para estudar com um computador e uma impressora, uma estante para guardar livros, e já tinha alguns nela, um banheiro, um guarda roupa pequeno com algumas roupas nele que me eram um pouco familiar, e em cima da cama de solteiro tinha algo que me chamou a atenção.
- Abra - pediu Peter ao meu lado, um pouco entusiasmado
Olhei para ele e sem seguida abri o pacote, encontrei coisas minhas que eu usava antes do acidente: Um estojo com um kit de ferramentas que nosso pai havia me dado quando era criança, algumas revistas em quadrinhos que eu costumava colecionar, um dos óculos de grau que eu usava e um mp3 que havia pertencido a minha mãe, isso me trouxe lembranças dela cantando enquanto ouvia músicas nele.
- A lente do óculos não serve mais, - começou ele chamando minha atenção – mas acho que podemos resolver isso caso ainda queira usar essa armação.
Eu apenas o olhei.
Instantes depois John e Vivian entraram no quarto, eu ainda estava olhando as revistas dentro da caixa com Peter.
- A assistente social já foi, – começou John - você pode ficar à vontade aqui no seu quarto ou em qualquer lugar da casa, mas se precisar de algo, é só procurar a gente está bom?
Afirmei colocando a caixa de volta em cima da cama. Olhei para os lados como se tentasse me localizar ali dentro, com todos me olhando como se não soubesse mais o que fazer, era estranho estar ali com eles, eu sentia como se não me encaixasse, como se eu fosse uma completa estranha.
- Vou fazer um lanche para todos - informou Vivian quebrando o gelo que havia se formado e me olhou - trago algo pra você?
Eu queria dizer que não precisava, mas minhas palavras não saiam da boca, então só indiquei que iria descer. Ela afirmou e antes de todos saírem, Peter se aproximou como se fosse me abraçar de novo, mas só tocou em meu ombro e em seguida saiu do quarto.
Fiquei um tempo parada ainda olhando a minha volta, acho que se passaram alguns minutos até que eu finalmente sentei na cama.
Olhei novamente com mais calma as coisas dentro da caixa e depois, voltei a olhar para os lados. Levantei um tempo depois indo olhar a vista da janela. As flores no jardim da casa da vizinha eram realmente muito lindas, eu teria pena de arrancar qualquer uma delas. A dona da casa regava uma parte com um regador de mão, e a outra parte era regada com aqueles regadores automáticos.
Fechei os olhos por um momento e respirei o aroma que as flores produziam, aquela sensação era ótima.  Quando abri os olhos fui surpreendida por uma garota que me olhava da janela de frente a minha. Ela parecia ser da minha idade, tipo uns 16 ou 17 anos, seus cabelos também eram ruivos como os de Vivian, mas estavam presos por uma única trança de lado, ela parecia ser uma versão da Vivian só que mais nova, e por algum motivo isso fez meu rosto esquentar.
Ela se aproximou mais de sua janela, me olhando perplexa como se estivesse vendo um fantasma e isso acabou me deixando envergonhada.
Fui devagar para o lado, tentando não olhar para aquela garota e discretamente fechei as cortinas.

Aquela cortina estava fechada desde então.

- O dia está bonito, não acha? – perguntou Vivian me trazendo de volta ao presente.
Aconcheguei mais no banco do carro sem responder, voltando a olhar para fora da janela. Continuamos caladas até ela parar em um sinal vermelho.
- Está preparada para as provas finais? – perguntou Vivian novamente, tentando puxar assunto.
- Acho que sim, - respondi tentando socializar com ela – tenho me dedicado muito.
- E quanto a ideia de voltar para a escola no início do ano?
Aquela pergunta me fez ter calafrios, eu estava conseguindo estudar em casa e estava indo muito bem. Mas pensar em voltar a ter contato com pessoas, barulho e mais pessoas me fazia entrar em crise de pânico. Tentei não transparecer isso para Vivian, que estava sempre preocupada comigo, e apenas tentei continuar com a “social”.
- Estou pensando... – respondi com a voz um pouco presa
Acho que isso a fez perceber minha pequena crise, e apenas seguiu o caminho quando o sinal ficou verde.

Durante aquele mês inteiro, eu não fazia outra coisa além de estudar para passar no supletivo, aquela ideia de voltar a estudar numa escola de novo fazia meu estômago embrulhar, eu tinha medo de que algo acontecesse e isso muitas vezes, me tirava o sono.
- Está com fome? - perguntou Vivian me olhando enquanto servia John no jantar.
Afirmei me sentando na cadeira ao lado de Peter, ela me serviu bife com batata fritas e um copo de suco de laranja.
- Samantha.. - chamou Peter fazendo-me olhar para ele – pode me passar o ketchup?
"Samantha?" - pensei
Fazia muito tempo que ninguém me chamava por aquele nome, e isso me trouxe lembranças que eu estava tentando esquecer. Um clima tenso acabou se formando no ar, com todos olhando para mim, esperando que eu dissesse algo.
- Sam, – consegui dizer um pouco rouca - pode me chamar de Sam, Peter?
Apesar de aquele ser o meu nome, eu não me sentia a vontade com ele, parecia pertencer a outra pessoa agora e não a mim. E isso parecia incomodar muito meu irmão John, incomodava tanto que ele nem sequer conseguia disfarçar.
Eu entreguei o ketchup a ele, que me olhava como se tentasse me reconhecer de alguma forma como sua irmã, e após um tempo, ele concordou com meu pedido.
- Ok, Sam. – disse ele, e logo continuou - Você ainda sabe jogar basquete? Acho que próximo ano vou tentar entrar no time, mas preciso treinar um pouco antes.
- Acho que sim, - respondi – mas porque não chama o John? Ele era titular no time da escola.
- Eu não vou ter tempo, - respondeu John antes de Peter falar algo – talvez precise até ficar uns dias fora.
Nos olhamos por um instante e em seguida me voltei a Peter.
- Então, eu te ajudo sim.
Peter afirmou, e parecia bem animado com isso.

Após o jantar, retirei os pratos da mesa e levei para pia, Vivian não era tão diferente de minha mãe, tinha algumas regras e uma das primeiras coisas que fez quando cheguei, foi criar uma rotina de tarefas onde todos ajudavam. E aquela era minha vez de lavar as louças.
Quando terminei fui ate a sala onde eles estavam assistindo tv. Peter já tinha apagado no sofá e John conversava ao celular, provavelmente com seu chefe. Subi a escada indo para meu quarto e antes de entrar nele, observei a entrada do sótão no final do corredor, uma escada de ferro saia dele.
- John? – ouvi Vivian chamar de dentro dele.
Me segurei na escada e subi os degraus até dar de cara com uma caixa e Vivian do outro lado dela.
- Ele está ao telefone, – respondi – posso ajudar?
- Claro, - respondeu ela me olhando sobre a caixa – desce isso pra mim, por favor.
Afirmei, puxando a caixa para mim, descendo os degraus devagar até chegar no chão.
Vivian desceu logo em seguida fechando a entrada do sótão passando as mãos sujas de poeira na calça jeans dela.
- O que é isso? – perguntei abrindo a caixa em seguida
- São algumas roupas do seu irmão que vou mandar pra um abrigo – respondeu ela
- Posso? – perguntei apontando para dentro da caixa.
Ela afirmou e em seguida entrou no meu quarto indo até o guarda roupa. Levei a caixa pra dentro colocando em cima da cama e comecei a tirar algumas peças de roupa de dentro. Muitas blusas eram do meu tamanho, algumas calças jeans também. Me olhei no espelho segurando uma das blusas sobre mim, e gostei do que vi.
- Será que posso ficar com essas? – perguntei
Ela se aproximou de mim, olhando para meu reflexo junto comigo.
- Você gostou? – perguntou ela atrás de mim
Afirmei ficando de frente pra ela.
- É melhor do que essas que tem aí no guarda roupa, - respondi apontando para as roupas femininas - sem ofensas.
Ela riu.
- Ok, - respondeu ainda rindo – tire o que você quiser da caixa e coloque as que não quer dentro, depois a gente vai comprar mais roupas se precisar.
- Obrigada! – agradeci empolgada como uma criança que ganhava pirulito
Vivian bagunçou meu cabelo e saiu do quarto em seguida fechando a porta. Ela era uma mulher muito compreensiva, gostava muito desse jeito dela, era a única que não me pressionava a nada naquela casa e parecia sempre tentar me reconfortar em tudo.

Peguei o MP3 que era da minha mãe que estava em baixo do travesseiro e o liguei, passando algumas músicas e na lista principal, tinha uma música que ela ouvia muito; unwell – matchbox twenty. Coloquei os fones de ouvido e fiquei ouvindo a música enquanto tirava as roupas do guarda roupa que eu não queria mais. Separei as que gostei que estavam na caixa, colocando-as em cima da cama e depois que coloquei as outras na caixa.
Quando terminei, coloquei a caixa perto da porta e comecei a guardar as outras no guarda roupa.
Troquei de roupa, vestindo uma bermuda e uma blusa regata que meu irmão usava quando era mais novo e fui para a frente do espelho. Acabei gostando do que vi, apesar de eu ser meio magricela, aquela roupa me deixava confortável.
Deitei na cama, esperando que o sono viesse, mas meus pensamentos não me deixavam dormir, virei pra um lado, virei pro outro e acabei me sentando de novo. Olhei para a cortina fechada pensando se abria ou não.
A música seguinte da playlist começou a tocar; Oasis- wonderwall. Mesmo com receio, levantei indo até a janela me sentando com as pernas cruzadas de frente para a cortina, e aos poucos, acabei abrindo-a. A lua cheia iluminava aquela noite sem estrelas, e o aroma que saia do jardim era simplesmente magnífico.
Fiquei ali admirando a noite e ouvindo música até que a luz da janela da frente ascendeu. Minha vizinha falava ao celular andando de um lado para o outro. Mesmo com o volume do mp3 um pouco alto eu podia escutar algumas coisas que ela dizia, tipo:

"- O que quer dizer com isso?... - Não, eu não sei...
- Caio, por favor... - Não é isso... - Como você pode achar isso de mim?  - Caio?... - Caio???

E com essa última palavra, ela desligou o celular fechando os olhos e respirou fundo, dando um suspirou longo em seguida. Quando abriu os olhos, ela olhou para mim ficando paralisada de novo, nos olhamos por um tempo e em seguida ela perguntou:
- O que você está olhando?
Fingi não ouvir e tirei um fone, sem responder. Ela semicerrou os olhos e se aproximou mais de sua janela.
- Você ouviu alguma coisa que eu falei antes? – perguntou ela novamente
Nossas janelas eram bem próximas, daria até para eu pular da minha pra dela se eu quisesse. Apenas neguei com a cabeça e ela continuou me olhando estranho, aquilo estava me fazendo suar frio.
- Eu conheço você? - perguntou ela de novo e eu apenas neguei, e ela continuou - Não sabe falar?
Suspirei, e coloquei o fone de novo. Peguei o mp3 e fui mudar a música, quando baixei a cabeça para ver a lista uma bolinha de papel me acertou tirando o meu fone, olhei para a frente e a menina estava com outra na mão.
- Você é louca? – perguntei irritada
- Bem, - ela continuou – saber falar você sabe. Eu conheço você? - perguntou de novo
Eu desliguei o mp3 e coloquei em cima da cama.
- Não – respondi friamente
Ela sentou em algo em frente a sua janela, que me fez pensar ser sua cama, do mesmo jeito que eu estava sentada.
- Você é da família? - ela continuou a perguntar e eu assenti – Que estranho...
Ela olhou brevemente para as flores, em seguida se levantou fechando as cortinas sem falar mais nada.
Fiquei um tempo olhando para a janela dela sem entender o que tinha acontecido. Então, apenas me ajeitei deitando com as costas na cama.
- Que garota estranha... – murmurei

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