*** Capítulo 10 ***

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O clima dentro de casa não era um dos melhores, apesar de John parecer arrependido do que tinha feito, ele era orgulhoso de mais pra pedir desculpas, e mesmo eu tendo finalizado todo o serviço de concerto de computadores pendentes dele, ele não agradeceu. Apenas me pagou pelos concertos e disse que iria trazer mais depois.
Eu não tinha nada pra fazer, estava ficando ociosa, e isso acabou me lembrando do desenho que havia pedido a Alex.
Tirei meu caderno da mochila, onde o havia colocado e peguei a folha, observando o desenho da coruja. Uma vez, eu tinha visto alguns vídeos de pessoas que usavam peças sobressalentes de computadores para criar todo tipo de enfeites, então pensei que eu poderia tentar fazer uma coruja com as peças que tinham sobrado dos concertos pra ela.
Depois de mais ou menos meia hora tentando algo, percebi que não era tão fácil como parecia.
Devo ter me distraído muito, pois me assustei quando uma bolinha de papel caiu próxima a mim. Olhei para a janela arrastando a cadeira até ela, e Alex estava em sua janela, fazendo um gesto para que eu abrisse a bolinha de papel e foi o que eu fiz. Na folha tinha escrito em letras maiúsculas: CADÊ SEU CELULAR?
Voltei para a mesa pegando o celular que estava em cima dela, e ele estava descarregado. Coloquei na tomada e quando ele ligou, haviam várias mensagens e ligações dela.
- Caramba... – pensei
Voltei para a janela meio sem jeito.
- Desculpa, - comecei – eu estava tão focada em um projeto que acabei não percebendo que ele tinha descarregado.
Ela suspirou, como se estivesse entediada.
- Algum problema? – perguntei
- Não, - respondeu ela – só queria conversar um pouco, talvez tentar mais algumas coisas com você, o que acha?
- Bem...
- Sam? - chamou Vivian abrindo a porta.
Olhei para ela girando na cadeira e ela entrou. Ao ver Alex em sua janela ela me olhou um tanto curiosa, mas acabou não falando nada sobre isso.
- A comida está pronta, - informou ela – vem jantar.
- Ok.. – respondi me levantando
- Ei Alex, - chamou Vivian, me fazendo olhar para elas – quer vir jantar com a gente?
- Claro! – respondeu ela animada – Minha mãe vai trabalhar até tarde hoje de novo mesmo.
- Pois venha, - pediu Vivian – vamos esperar lá embaixo.
- Ok! – respondeu Alex
Descemos a escada, e enquanto Vivian colocava mais um prato a mesa, eu fui até a varanda, esperar por ela. Quando ela chegou, a cumprimentei meio sem jeito e entramos, indo até a cozinha.
- Sua mãe tem trabalhado muito, não é? – perguntou Vivian a Alex após nos sentarmos e começarmos a nos servir
Alex afirmou, estávamos comendo a famosa “carne com batata holandesa de Vivian”, se tinha uma coisa que Vivian fazia que me deixa com água na boca, era esse prato.
- Ela está ocupando o lugar do papai na empresa enquanto ele está na Europa, - respondeu Alex um pouco triste – eles nem são mais casados, mas ela age como se fossem e acaba esquecendo da própria filha.
Ela parecia sentir muita mágoa com isso, e ao perceber nossos olhares, ela tentou disfarçar.
- Sua comida esta uma delícia tia, - disse ela tentando mudar de assunto – queria saber cozinhar tão bem assim.
Vivian sorriu com o comentário, mas acabou que não conseguimos conversar sobre mais nada até o fim do jantar. Como aquele era meu dia de lavar as louças, eu recolhi os pratos da mesa e levei até a pia.
- Posso ajudar em alguma coisa? – perguntou Alex, me entregando o restante dos pratos
- Não, – recebi eles fazendo ela se afastar – você é nossa visita hoje, vá pra sala eu vou daqui a pouco, ok?
- Ok!
Quando terminei, fui pra sala me sentando no sofá e fiquei observando eles jogando uno, era quase como um ritual depois do jantar, Vivian e Peter sempre jogavam aquilo. Já John, costumava ver o jornal e depois ler um livro.
- Vem jogar também, Sam! – chamou Alex
- Não! – disseram Vivian e Peter ao mesmo tempo assustando-a
- Ok, o que foi isso? – perguntou Alex imóvel
Peter olhou para ela
- Ela não sabe jogar, - explicou ele ironicamente – sempre humilha a gente ganhando todas as partidas.
- Sério? – perguntou Alex novamente parecendo interessada nisso
Dei de ombros olhando para ela.
- Só teve uma vez que ela perdeu, - começou ele – uma única vez, e eu tenho provas disso!
Ele subiu a escada correndo, e voltou com uma caixa pequena nas mãos, se sentando ao meu lado.
- Ela não queria aceitar que tinha perdido, - continuou Peter – então pegou todos os chocolates que tínhamos apostado e levou para o quarto dela.
Ele procurava uma foto em específico no meio de tantas outras naquela caixa. Vivian parecia observar a gente, como se esperasse por algum tipo de crise minha, mas nada disso aconteceu.
Alex ficou de joelhos entre minhas pernas olhando para dentro da caixa com Peter e quando ele a achou, entregou a foto a Alex, que começou a rir um pouco mais alto ao me ver escondida de baixo da cama comendo chocolate.
- Que linda! – elogiou ela ao me olhar
Foi aí que percebi que ele estava mostrando uma foto minha de antes do acidente e isso me congelou por um momento. Vivian percebeu isso se levantando, vindo em minha direção.
- Peter... – disse Vivian
Eu percebi sua preocupação, mas já não tinha nada que pudesse ser feito ali, era algo do meu passado, aquilo fazia parte de mim, e estava tudo bem, aquilo não iria me machucar.
Peter me olhou preocupado, começando a se sentir culpado.
- Está tudo bem gente, - informei olhando para eles – está tudo bem. – repeti olhando para Vivian
Ela sentou no braço do sofá ao meu lado, colocando a mão em meu ombro, e isso fez Alex nos observar.
- Deixa eu ver essa caixa, - pedi pegando ela das mãos de Peter, olhando as fotos seguintes – até que éramos bonitinhos.
Isso os fez rir, e continuamos a ver o restante das fotos, contando a história de cada uma, foi uma noite bem agradável.
Peter já estava quase dormindo quando John voltou da varanda, e ao ver a caixa em meu colo, ele virou o rosto subindo a escada.
- Ok, - disse Vivian olhando seu marido entrar no quarto - hora de dormir.
Ela pegou a caixa guardando as fotos, e entregando de volta a Peter.
- Foi uma noite muito divertida tia, – disse Alex para Vivian - obrigada por me convidar.
Vivian sorriu, e pareceu ter uma ideia.
- Porque você não dorme aqui hoje? – perguntou ela – Pode dormir no quarto da Sam.
Alex e eu nos olhamos, ela pareceu meio sem jeito, mas não disse nada e eu acabei olhando para Vivian.
- O que acha? – perguntou Vivian me olhando
- Por mim tudo bem, - respondi voltando a olhar para Alex – tem uma cama reserva de baixo da minha.
- Ótimo! - disse Vivian sorrindo se aproximando de Alex – Me dê as chaves da sua casa, vou ver se esta tudo fechado lá e aproveito pra pegar suas coisas da escola.
- Ok.. – disse Alex tirando a chave do bolso e entregando a Vivian
Quando ela saiu pela porta, Peter piscou pra mim subindo as escadas em seguida, fomos junto com ele e ao chegarmos na porta do meu quarto ele se virou para nós.
- Boa noite.. – disse Peter entrando no quarto dele
- Boa noite.. – dissemos eu e Alex ao mesmo tempo
Esperei Alex entrar no meu quarto primeiro, era estranho ter outra pessoa ali, ela também parecia um pouco tensa com aquilo, mas apenas fechei a porta do quarto depois de entrar me aproximando da cama.
Ela ficou parada de pé em frente a mesa do computador, olhando para meu mural e para as coisas sobre a mesinha.
Puxei a cama reserva que tinha embaixo da minha, pegando um lençol e um travesseiro no guarda roupa em seguida.
- Se quiser, - disse, chamando a atenção da Alex, colocando as coisas que havia pego em cima da cama reserva - pode ficar com a minha cama.
- Ah não, - ela se aproximou sentando na cama reserva – essa tá ótima.
Vivian abriu a porta do quarto com as coisas de Alex nos braços, fui até ela recebendo-os e depois coloquei em cima de minha cama.
- Qualquer coisa, - disse Vivian – é só chamar, ok?
- Ok.. – respondi vendo ela sair e fechar a porta.
Coloquei as mãos na cintura olhando para Alex em seguida, ela ainda olhava para meu mural, agora com as pernas cruzadas.
- Acho que vou tomar um banho, - disse chamando sua atenção – pode ficar a vontade.
- Obrigada. - disse ela me olhando
Entrei no banheiro um pouco nervosa, não sei se era porque ela estava no meu quarto e havíamos começado a “namorar” de mentira, ou se era porque eu iria dormir tão próximo a alguém daquele jeito.
Tirei a roupa, colocando-a sobre a pia, indo para debaixo do chuveiro. A água estava um pouco fria, e isso acabou me fazendo soltar um gritinho fino. Quase que imediatamente, a porta do banheiro se abriu, com Alex entrando assustada.
- Está tudo bem? – perguntou ela me olhando preocupada
Por um momento, eu não consegui me mover. Percebi ela me olhar dos pés a cabeça e seu rosto começou a ficar visivelmente vermelho, me deixando completamente constrangida. Cobri minhas partes íntimas com as mãos e me virei, ficando de costas para ela.
- Está, - respondi a sua pergunta com a voz abafada – você poderia ter batido.
Ouvi a porta do banheiro se fechando, e quando olhei para trás, ela estava tirando a roupa. Isso acabou me fazendo corar e olhar para a parede.
- O que está fazendo? – perguntei nervosa quando senti ela entrar no box do chuveiro comigo
- Vou tomar banho com você, - informou ela calmamente – já que vi você nua, duas vezes, acho que posso deixar você me ver também, é justo.
Minha mente quase ficou em branco, tudo o que se passava nela era que Alex estava nua ao meu lado, e isso era muito constrangedor.
- Sam? – chamou ela se aproximando mais de mim – você vai terminar o banho ou não?
Respirei fundo olhando devagar pra ela, tentando não olhar para seu corpo, mas era quase impossível.
- Não precisa ficar tão tensa, - disse ela me olhando – é só um banho.
Por algum motivo, eu confiava nela. Ela poderia ser meio atrevida as vezes, mas em nenhum momento, fez algo contra mim, e isso me fez relaxar.
Acabamos terminando de tomar banho juntas, mas sem olhar uma para outra. Saímos do banheiro de toalhas após nos secar e quando fomos nos vestir, Alex percebeu que Vivian tinha trazido apenas a roupa para escola.
- Droga... – resmungou ela
- Aqui, - entreguei uma de minhas blusas a ela – pode dormir com isso.
Ela a recebeu, examinando-a.
- Vai ficar enorme... – informou ela, vestindo em seguida
E realmente ficou, parecia mais um vestido do que uma blusa.
- Então, - disse ela se sentando na sua cama, cobrindo as pernas com o lençol – o que vamos fazer agora?
- Dormir? – perguntei, deitando em minha cama
- Eu estou ansiosa pra ver a reação das pessoas amanhã, - começou ela – não acha deveríamos “treinar” mais alguma coisa?
Me ajeitei na cama olhando-a, ela parecia uma criança chateada por não conseguir comer doce antes do jantar.
- Ok, - suspirei, cedendo aos seus caprichos - o que você quer fazer? 
Ela sorriu, ficando de joelhos no seu colchão.
- Bom, - começou ela – você consegue me abraçar, talvez consiga segurar minha mão sem eu pedir, mas eu vou precisar fazer esse tipo de coisa também, pra parecer mais recíproco, sabe? – ela apoiou o queixo em minha cama – Mas não sei ao certo o que mais podemos fazer.
Apoiei os cotovelos na cama, ainda olhando-a.
- Quando Peter disse que não íamos precisar nos beijar eu concordei com ele, - continuou ela – mas quando eu estava no vestiário, eu percebi que talvez a gente vá precisar fazer algo que chegue perto disso.
- O que? – perguntei ficando nervosa – Porque?
- Acredito que seja necessário, - disse ela suspirando – Caio não vai acreditar que temos algo só segurando as mãos ou dando abraços, ele me fez aceitar algumas apostas no passado, e pode pensar que isso é só mais uma, vai ter que parecer real.
Aquele plano estava começando a parecer a uma má ideia, acho que eu não ia conseguir fazer coisas além de segurar as mãos e abraçar. Não era porque eu não quisesse ajudar ela, mas minhas reações involuntárias iriam acabar entregando o plano todo.
- Você disse que ouviu minha conversa com Peter naquele dia que fomos a minha psicóloga, certo? – perguntei
Ela afirmou, me olhando.
- Então, - continuei - deve saber que as vezes meu corpo trava ou reage sozinho, certo?
- Sim, - respondeu ela - eu já percebi isso algumas vezes, mas porque isso acontece?
Aquela resposta seria algo complicado pra explicar, mesmo querendo comentar sobre as coisas que me fizeram ter medo de contato físico, acho que ainda não conseguia falar sobre isso com ela.
- É meio complicado... - respondi vagamente
- Então talvez a gente devesse desistir desse plano.
Eu sabia desde o começo que contato físico entre namorados era algo bem íntimo e normal, e mesmo com todos os meus problemas, eu havia aceitado participar disso.
- Que tipo de coisas precisaríamos fazer pra parecer “real”? – perguntei
Ela apoiou as mãos em minha cama, como se tivesse pensando em algo, depois ficou de pé, subindo nela.
- A gente vai ter criar uma intimidade física, - começou ela – eu nunca estive com uma garota antes – continuou ela subindo em cima de mim meio sem jeito – mesmo você não parecendo com uma, isso também vai ser um desafio para mim, então, eu queria tentar algo, mas acho que vou precisar te tocar, você me permite?
Afirmei um pouco hesitante, enquanto ela sentava no meu colo de frente para mim.
- Se por acaso você começar a se sentir mal, - continuou ela – eu quero que me fale, ok?
Afirmei novamente ao vê-la segurar em minhas mãos, como se as estivesse inspecionando-as. Depois, seguiu as pontas dos dedos por meu braço, indo até meu ombro.
- Está tudo bem? – perguntou ela
Seu toque era suave, não tinha como eu ter medo daquilo, então apenas afirmei mais uma vez.
- Vou continuar... – disse ela baixinho em meu ouvido, fazendo meu corpo inteiro arrepiar
Senti ela hesitar ao encostar o queixo em meu ombro, mas depois, uma de suas mãos acabou indo parar em minha nuca, fazendo meu coração bater um pouco mais acelerado
- Seria o início de uma crise? – pensei
Mas a cada toque suave dela, ao invés de sentir medo do que poderia acontecer, eu simplesmente relaxava e a vontade de tocar ela também começou a surgir
- O que eu faço? – pensei em voz alta
- Você pode me tocar também, - respondeu ela baixinho, me fazendo engolir em seco – não tem problema, estamos só nos duas aqui afinal. Você pode ver até onde consegue ir.
E enquanto ela fazia carinho em minha nuca, aos poucos, eu fui envolvendo sua cintura com meus braços, subindo as mãos por suas costas e ela acabou soltando um suspiro abafado em meu ouvido.
- Fiz algo errado? – pensei
Tive vontade de perguntar em voz alta, mas ela encostou a boca em meu pescoço, parecendo hesitante, e isso me fez sentir borboletas em meu estômago. Acabei segurando ela com um pouco mais de força, fazendo-a morder meu pescoço de leve e se mover sobre meu colo como se tentasse encostar mais em mim.
- O que está acontecendo? – pensei
Ela subiu a mão por minha nuca, segurando firme em meus cabelos, começando a beijar meu pescoço, colando o corpo no meu e algo terrível veio a minha mente.
- Alex... – murmurei ofegante
Ela tocou meu rosto com a outra mão, ainda beijando meu pescoço.
- Alex! – repeti mais alto
Quando ela percebeu que meus olhos estavam ficando marejados, ela levou a mão até a boca.
- Aí meu Deus... – murmurou ela – O que estou fazendo? Você está bem?
Fechei os olhos encostando a testa no ombro dela começando a chorar.
- Aí meu Deus, Sam... – sussurrou ela tentando me fazer olha-la – me perdoa, eu exagerei, me perdoa por favor.
Neguei com um gesto de cabeça, ainda segurando em sua cintura.
- A culpa não é sua, - consegui dizer baixinho, tentando conter o choro – é só que, eu não consigo controlar quando essas lembranças vem...
- Que lembranças? – perguntou ela preocupada
Eu a olhei enxugando as lágrimas em meu rosto, e resolvi lhe contar minha história..

Há mais ou menos 3 anos, quando John informou aos meus pais que tinha sido transferido de batalhão e que tinha encontrado a mulher dos sonhos dele, eles resolveram fazer uma viajem surpresa para ir visita-los.
Mas não foi tão surpresa assim, porque acabaram mandando Peter na frente de avião, ele tinha tirado boas notas e como estava perto do nosso aniversário, aquela viajem seria como um presente pra ele adiantado, e nós, iríamos de carro porque minha mãe tinha medo de voar.
Aquele foi nosso maior erro.
Era pra ser uma viajem bem tranquila, estávamos rindo, cantando as músicas chatas do meu pai, e de repente, o carro simplesmente capotou.
Ainda não consigo lembrar se algo o acertou ou se meu pai acabou perdendo o controle do carro, mas lembro que minha mãe olhava pra mim, me pedindo pra procurar ajuda, ela estava presa, e não conseguia se soltar, meu pai já não se mexia.
Eu consegui sair do carro depois de algumas tentativas frustradas de empurrar a porta, minha perna escorria muito sangue e doía muito, como se tivesse quebrada, e por conta disso, eu acabei tendo que me arrastar pelo chão cheio de vidro quebrado.
Tentei me levantar algumas vezes, mas meu corpo estava tão pesado, e eu me sentia tão desnorteada...
Havia chamas por todos lados e ninguém por perto, e eu acabei não conseguindo tirar minha mãe do carro quando ele explodiu.

Lembro que na primeira vez que acordei depois da explosão, eu estava dentro de um carrinho de compras de supermercado, minha cabeça e perna doíam muito e eu não conseguia me mexer, mas sabia que eu não estava sozinha, porque parecia que alguém empurrava o carrinho as vezes, mas eu não conseguia ver quem era.
Eu apaguei várias e várias vezes, não conseguia ficar consciente por muito tempo, mas teve um momento, que eu acordei deitada no chão frio dentro de um quarto, estava muito escuro e quase sempre eu estava sozinha nele, as vezes, alguém aparecia e deixava um copo com água e um pedaço de pão perto de mim, mas eu nunca conseguia ver quem era, acabei perdendo a noção do tempo lá dentro.
Em outro momento, eu acordei com o raio de sol no meu rosto, eu estava dentro do carrinho de compras de novo, minhas roupas estavam rasgadas e eu estava toda suja de sangue entre minhas pernas.
Eu entrei em desespero.
Comecei a chorar e gritar pedindo ajuda, mas a pessoa que estava comigo, me calou colocando um pedaço de pano na minha boca, e acordada, ele abusou de mim de novo.

Na noite que consegui fugir, eu havia acordado ao lado de uma lata de lixo quase do meu tamanho, estava muito machucada e sentindo muita dor.
Cheguei a ver algumas pessoas conversando em um beco, e consegui me sentar escorando na lixeira. Depois de tentar muito, consegui desamarrar meus pés, mas antes que eu pudesse levantar e correr, alguém se aproximou.
Fiquei quieta fingindo que estava dormindo e depois de um tempo, vi alguém sentado de costas pra mim. Juntei todas as forças que tinha e levantei, tentando não fazer barulho, peguei a primeira coisa que vi em minha frente, e o acertei na cabeça com toda força que eu tinha. Ele caiu no chão como um saco de batatas e eu corri, corri o mais rápido que consegui para longe dali.
Depois de muito tempo correndo sem rumo, foi que eu consegui olhar para trás e ver que finalmente estava sozinha.
Dei um jeito de me trancar em um banheiro num posto de gasolina, e consegui soltar minhas mãos que ainda estavam amarradas com um barbante. Meus pulsos estavam em carne viva, de tão machucados.

Quando eu vi meu reflexo no espelho quebrado do banheiro, eu comecei a chorar. Eu não conseguia me reconhecer no meio de tanto machucado e sujeira.
Meus cabelos estavam tão duros e grossos, que eu não conseguia nem pegar neles, e acabei tendo a ideia de cortar ele, peguei um pedaço de vidro do espelho e comecei a passar no meu cabelo tirando todo aquele volume que me dava nojo.
Depois que percebei que aquilo havia mudado mais ainda minha aparência, eu resolvi sair do banheiro e ir procurar ajuda, mas as pessoas pareciam ter medo de mim, provavelmente achavam que eu iria assaltar elas, ou algo do tipo. E eu estava com tanta fome, tanta sede, que acabei começando a pegar comida do lixo.
Como eu não lembrava o endereço ou telefone do meu irmão, eu acabei aprendendo a me virar como podia pra sobreviver, durante o dia, até que parecia fácil, mas a noite, eu precisava me esconder.
Eu não era a única dormindo em caixas de papelão e me esquentando com jornal, haviam outros na rua comigo, e eles as vezes brigavam até pelo que não tínhamos.
Numa dessas brigas, eu acabei dormindo em baixo de chuva e adoeci, não conseguia nem ficar de pé, e acabei desmaiando perto de uma farmácia, um dos empregados me encontrou e acabou me levando ao hospital, foi lá que eu acabei conversando com um médico, e ele entrou em contato com uma assistente social, localizando meus irmãos alguns dias depois.

Alex me olhava com os olhos cheios de lágrimas.
- A maior parte das minhas reações involuntárias a toques físicos, - continuei, ajeitando ela sobre meu colo – vem do estresse pós-traumático que eu acabei adquirindo, então, você não tem culpa por eu ter ficado assim.
Ela me olhava como se não soubesse o que fazer.
Ficamos em silêncio por um tempo, ela parecia estar digerindo toda aquela informação, mas não saiu de cima de mim, apenas ficou me olhando, como se procurasse por palavras para continuar com aquela conversa. Quando ela pareceu querer finalmente falar algo, seu celular tocou em cima da cama, fazendo-a se inclinar sobre mim para pegá-lo.
- Alô? – disse ela ao atender.
Escorei minhas costas na cabeceira da cama sentindo minhas pernas um pouco dormentes, há quanto tempo estávamos naquela posição mesmo?
- Eu não posso falar agora, - disse ela ao telefone – estou um pouco ocupada.
Ela segurou em minha blusa, prestando atenção no que a pessoa do outro lado da linha falava, e isso a fez fechar os olhos como se estivesse se irritando.
- Eu estou com alguém, ok? - disse ela voltando a me olhar – Não me ligue mais, por favor.
Ela desligou o telefone, suspirando em seguida.
- Era o Caio, - disse ela com o celular na mão – desculpe por isso.
- Você está bem? – perguntei
Ela deu de ombros, colocando as mãos no rosto.
- Se eu estou bem? - começou ela, saindo de cima de mim – Você me conta tudo isso e é comigo que está preocupada?
Ela me olhava com os olhos cheios de lágrimas.
- Eu não sabia que você tinha passado por tudo isso, Sam. E eu ainda... – ela deu uma pausa pensando no que tinha acabado de fazer comigo – eu sinto muito, eu não deveria ter encostado em você, eu não deveria ter feito nada disso hoje!
Ela desceu para sua cama, tentando se cobrir com o lençol, como se quisesse se esconder.
- Estou me sentindo completamente idiota e egoísta por querer usar você pra atingir ele.
Ela abraçou o travesseiro escondendo o rosto, e pude perceber que ela havia começado a chorar.
- Eu não sei o que deu em mim... – a voz dela saiu abafada.
Sem pensar duas vezes, fui para a cama dela e a abracei, fazendo-a soltar o travesseiro, escondendo o rosto em minha blusa e retribuindo o abraço.
- Me desculpa Sam...
- Está tudo bem, Alex, - disse baixinho – está tudo bem.
- Acho melhor a gente desistir dessa loucura...
- Ei... – chamei, fazendo ela olhar para mim – está tudo bem, a gente vai continuar com o plano, mas vamos com calma ok?
Ela ficou me olhando, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas.
- A gente não precisa forçar tanto, - continuei – vamos tentar ser natural. Como se tivemos mesmo começando a namorar, ou você tem pressa?
Ela negou.
- Então...
Ela segurou em minha blusa, encostando a cabeça em meu ombro.
- Você existe mesmo?
Dei de ombros, fazendo-a aconchegar em mim.
Fiquei fazendo carinho em seu braço até perceber que ela havia pegado no sono, eu não ia conseguir dormir se ficasse ali, então aos poucos, fui me saindo de seus braços tentando não acorda-la, e voltei para minha cama.

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