***Capítulo 4***

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- Então, você passou no supletivo, voltou a jogar basquete e “conversou” com sua vizinha? – resumiu a Doutora Diaz.
- É, - afirmei – foi nessa ordem.
Ela pareceu gostar daquilo e digitou algo no notebook.
- E como você está se sentindo com tudo isso?
- Ah... – murmurei, coçando perto da orelha
Fiquei olhando para os quadros na sala dela, muitos desenhos abstratos, mas todos preto e branco.
- Normal, eu acho. – respondi por fim
Ela afirmou, digitando mais algumas coisas. Em seguida, se afastou um pouco da mesa do notebook empurrando a cadeira para trás e se virou para mim.
- E você já conversou com alguém além de mim, sobre o que aconteceu depois do acidente? – perguntou ela me olhando
Aquela pergunta ecoou na minha mente, por um momento, parecia que aqueles 3 anos em que estive perdida na rua, tinham sido resumidos em 1 minuto, e isso me fez começar a suar.
- Não, - respondi passando a mão na testa – eu não consegui ainda.
A doutora semicerrou os olhos, me estudando.
- Seu irmão, - começou ela olhando para a tela do notebook como se procurasse algo – Peter?! – ela perguntou o nome dele como se afirmasse quem ele era e continuou - Vocês ficaram bem próximos nos últimos meses, ele não perguntou sobre nada?
Finquei as unhas no braço da poltrona, que hoje era preta, e senti meu coração acelerar.
- Não, - consegui responder – eles não entram nesse assunto, mas eu percebo que John não tem gostado muito da minha aparência.
Ela se voltou para a mesa e digitou mais alguma coisa.
- E sobre voltar a escola? – perguntou ela me olhando sob os óculos – Já é na outra semana, correto?
Afirmei, tentando relaxar.
- Peter vai estar comigo, - comecei – vou e volto junto com ele, isso me deixa menos ansiosa.
- Humrum, - murmurou ela digitando mais alguma coisa – bom, já está no nosso horário.
Soltei o braço da poltrona e levantei devagar.
- Ok.. - disse como se quisesse fugir dali
Ela percebeu e levantou, abrindo a porta pra mim.
- Beba um pouco de água, - pediu ela – coma alguma coisa doce, isso vai te ajudar a relaxar mais quando essas crises estiverem acontecendo, mas não deixe de tomar seus remédios.
- Tá bom.. - agradeci com um gesto de cabeça, e sai da sala.
Quando vi Vivian me esperando, não consegui mais me controlar, sempre que lembrava de algo relacionado ao que aconteceu depois do acidente, eu entrava em pânico e começava a chorar.
Assim que Vivian me viu correndo pro banheiro, ela foi atrás de mim, me encontrando em um dos boxes chorando, sentada no chão.
- Sam, - disse ela baixinho, em seguida ficou de joelhos próximo a mim como se não soubesse como reagir e acabou me abraçando – eu estou com você, estou aqui, ok? Você não está sozinha.
Aquele abraço, mesmo eu não me sentindo bem com o toque de outras pessoas, fez eu me sentir segura, e eu acabei retribuindo ele.

***

Naquela manhã, dia 22 de fevereiro de 2017, seria o primeiro dia de aula e estava fazendo muito frio. Não sabia dizer se minha dificuldade para levantar era por conta disso ou por conta ansiedade de frequentar uma escola novamente. Mas saber que Peter estaria por perto, me deixava um pouco mais tranquila, acho que se eu fosse para um lugar onde não conhecesse ninguém, eu iria pirar mais ainda. Desci a escada e todos já estavam tomando o café da manhã. Eles me olharam dos pés à cabeça.
- Bom dia, senhor Potter. – disse Peter sorrindo
Eu estava usando uma calça jeans, com uma blusa preta dizendo “9¾” e uma jaqueta vermelha quadriculada. Meus novos óculos redondos realmente me faziam lembrar o Harry Potter, e o comentário dele me fez revirar os olhos, tirando os óculos em seguida.
- Ah, qual é? – perguntou Peter rindo – Estava legal, você não vai conseguir enxergar direito sem ele, certo?
Dei um peteleco em sua orelha me sentando ao seu lado.
- Está nervosa? – perguntou John
Isso me fez congelar, ele não me olhava muito quando me via vestida com suas roupas, e não estava me olhando naquele momento também, mesmo parecendo preocupado.
- Um pouco. – respondi olhando para ele
- Quer que a gente vá deixar vocês? – perguntou Vivian, me fazendo olhar para ela
Era uma proposta tentadora, mas eu não queria incomodar eles mais ainda, então apenas balancei a cabeça em negação, mordendo um pedaço de pão com queijo.
- Não, obrigada, – respondi de boca cheia – vou de ônibus com Peter.
- Olha os modos a mesa Samantha! – disse John irritado ainda sem olhar para mim.
E isso acabou me deixando irritada também.
- É Sam! – corrigi ele, levantando da mesa em seguida.
John me olhou enquanto eu saia da cozinha e Peter levantou pegando nossas mochilas.
- Ele vai se acostumar, - disse Peter entregando a minha – dê um tempo a ele.
Peter poderia estar certo, mas cada vez que eu olhava para John, eu achava que ele havia se arrependido de ter me encontrado, e isso me deixava muito tanto triste quanto irritada.
Fomos para frente da casa seguindo até uma parada de ônibus que ficava quase em frente à casa de nossa vizinha. Nos sentamos em um banco para esperar por ele, e logo em seguida ela sentou do nosso lado. Ficamos em silêncio até o ônibus chegar, e quando subimos, sentamos bem atrás e ela sentou junto das amigas.
- Espero que você não fique na mesma sala que ela. – cochichou ele em meu ouvido – essa garota é um completo pesadelo, é sério.
Olhei para ela, e para minha surpresa, ela também me olhava, e isso me desconcertou. Ela percebeu isso e começou a rir, voltando a olhar para suas amigas.

Chegando na escola, fomos até a diretoria, onde peguei com uma das secretárias os horários de minhas aulas, e logo em seguida, Peter me acompanhou até minha sala.
Fiquei parada por quase 20 minutos olhando para a lista de horários no papel, e quase esqueci que meu irmão estava lá.
-Vai ficar tudo bem, - disse ele, chamando minha atenção e logo continuou – minha sala fica no outro corredor, mas assim que tocar o intervalo eu venho te encontrar aqui, ok?
Afirmei. Ele tocou em meu ombro meio sem jeito me dando boa sorte e se despediu com um sorriso, me deixando sozinha.
Voltei a olhar para o papel dos horários em minhas mãos e percebi que elas estavam trêmulas, com um pouco de dificuldade vi que tinha escrito que no primeiro horário, eu teria aula de português com a Professora Amélia Fox. Senti meu coração acelerar e minhas mãos começaram a ficar soadas, estava começando a perder os sentidos, quando uma garota passou por mim indo em direção a outra sala, só consegui focar no sorriso dela, e isso me fez voltar a ter controle sobre mim novamente. Respirei fundo e bati na porta, segundos depois, a professora saiu da sala me olhando.
- Pois não? – perguntou ela
Fiquei um pouco nervosa ao vê-la, ela era muito bonita e parecia ser muito nova para ser professora. Sua pele morena clara brilhava como se ela tivesse passado loção e seus cabelos negros eram tão lisos que parecia muito que ela tinha acabado de alisar ele.
- Disseram que minha primeira aula seria aqui. – consegui dizer um tempo depois de olha-la.
Ela pegou o papel de minhas mãos, e ao ver meu nome (Samantha Fernandes), me lançou um olhar confuso.
- Pode me chamar de Sam, - informei ao vê-la me olhando dos pés a cabeça – só Sam.
Ela sorriu mostrando um sorriso muito acolhedor.
- Seja bem-vinda, Sam. – disse ainda sorrindo.
Ela devolveu meu papel e me indicou onde sentar, e antes de eu ir até a cadeira, corri os olhos pela sala e para minha surpresa, minha vizinha estava sentada na última cadeira da segunda fila, bem ao lado de onde a professora havia me indicado.
Ela parecia muito mais surpresa do que eu, e talvez um pouco desconfortável ao ver onde eu iria ficar.
Caminhei até lá um pouco envergonhada, pois todos olhavam para mim dos pés a cabeça. Principalmente duas garotas próximas a minha vizinha, elas eram parecidas e isso me fez pensar que eram irmãs. Ambas tinham a pele morena clara, mas uma tinha o cabelo cacheado estilo afro e outra, usava rastafari.
Sentei na cadeira colocando minha mochila cinza sobre as pernas, e todos voltaram a olhar para frente. Já tinha algum tempo que a aula havia começado, e parecia que todos já haviam começado a copiar a matéria, mas uma parte da lousa já estava apagada.
- Alex, - chamou a professora - você poderia passar o começo da aula de hoje para o Sam?
- Claro. - disse minha vizinha fazendo-me olhar para ela rapidamente
Ela folheou o caderno e me entregou.
- Aqui, - disse ela me mostrando o caderno - é só a metade dessa folha mesmo, não chegou tão atrasado assim.
Pela primeira vez, pude olhar melhor ela, na noite da virada do ano estava um pouco escuro e não dava pra perceber o quanto ela era bonita, e isso me fez corar, pois pude perceber que a cor de seus olhos eram de um tom cinza como uma tempestade se formando a um tom azul como o oceano.
- Olá? – chamou ela fazendo suas amigas rirem
Peguei o caderno de sua mão um pouco envergonhada, agradecendo em seguida com um gesto de cabeça, e isso fez ela rir junto das amigas.
Queria conseguir enfiar minha cabeça em algum lugar naquele momento, ou simplesmente sumir dali.
Mas em vez disso, coloquei seu caderno ao lado do meu e observei sua letra; era cursiva e muito bonita, porém, o que me chamou mais atenção, foram os desenhos nos cantos da folha. Havia vários tipos de corujas desenhadas a lápis, uma em cada canto. Uma parecia olhar para o lado, a outra para cima e uma delas estava com as asas abertas.
Todas eram bonitas e isso me fez sorrir um pouco, comecei a copiar a matéria e mesmo olhando para o caderno, sabia que ela me olhava, mas tentei afastar esse pensamento e continuei copiando.
A sala estava bem quieta, a professora já havia explicado a matéria do dia, e todos estavam resolvendo os exercícios que ela havia passado. Quando terminei, fechei o caderno e lhe devolvi.
- Você desenha bem. – elogiei por impulso
Ela e as amigas me olharam ao mesmo tempo, e isso me fez engolir em seco, por um momento achei que ela fosse me criticar por estar bisbilhotando seus desenhos, mas ela sorriu de canto.
- Obrigada, - agradeceu ela – eu acho...
Aquele sorriso dela me desconcertou novamente, e devo ter ficado com uma cara meio boba, pois suas amigas riram um pouco mais alto fazendo a professora chamar a atenção delas.
Depois de um bom tempo, o sinal do intervalo tocou e Peter apareceu logo em seguida na porta.
Guardei minhas coisas na mochila, e ao levantar para sair, percebi que Alex estava me olhando dos pés a cabeça, e riu quando suas amigas cochicharam algo no ouvido dela enquanto me olhavam, isso me deixou nervosa o suficiente para esbarrar na cadeira da frente e sair da sala tropeçando nos próprios pés fazendo a sala inteira rir. Parece que eu havia me tornado a palhaça da turma.

A escola parecia um campo de guerra cheia de diversidade. Sentei na grama com Peter onde era bem afastado de todos, mas me dava a visão completa do lugar. Alguns alunos corriam de um lado para o outro feito baratas tontas, alguns garotos ficavam paquerando com as meninas mais bonitas, e algumas garotas ficavam reparando no que as outras vestiam, e bem a frente delas, um grupo de pessoas lgbt estavam conversando e alguns chamavam a atenção dançando as músicas da Rihanna. Ver eles dançando me fez sorrir, sempre gostei do humor que alguns deles tinham, na rua tinha feito alguns amigos assim e isso me fez até sentir saudades deles.
Algumas meninas daquele grupo se comportavam discretamente com suas namoradas, uma delas me olhou piscando para mim, me deixando sem jeito. Ultimamente, as garotas estavam me chamando mais atenção do que garotos, e isso acabou me deixando um pouco pensativa.
Peter me entregou uma maçã chamando minha atenção, e agradeci com vontade de fazer uma pergunta a ele, mas ao ver Alex e suas duas amigas passar por nós, acabei esquecendo o que queria perguntar e apenas dei uma mordida na maçã.
Elas riam e ficavam observando os garotos que passavam por ela, mas algo me dizia que elas queriam chamar minha atenção, pois as vezes riam e olhavam para mim.
Acabei percebendo que Peter também me observava como se quisesse me perguntar algo, mas quando eu o olhava, ele virava o rosto.
- O que foi? – perguntei depois de um tempo
Ele me olhou e suspirou em seguida.
- Não sei como perguntar isso, - começou ele – mas, você é lésbica agora ou algo do tipo?
Aquilo me fez engasgar com a maçã, e eu acabei rindo entre tossidas.
- Isso é sério? – perguntei tentando segurar o riso ao perceber que ele havia ficado sem jeito.
- É que... – ele deu uma pausa e continuou em seguida – Eu só queria conhecer você melhor, sabe? Depois de tanto tempo, eu não sei muito bem como me comportar ao seu lado, quer dizer, - ele deu uma pausa me fazendo parar de rir – me pediram para não falar sobre isso, mas você está tão diferente do que eu me lembro, e eu amo tanto você...
Ele me olhava como se quisesse chorar.
- Se você é lésbica agora, - continuou ele – eu só quero dizer que não me importo, e que você pode conversar comigo sobre garotas, eu iria adorar ter um assunto para falar com você.
Aquelas palavras me fizeram ficar com um nó na garganta, eu não sabia o que dizer, mas estava tão feliz ao ouvir aquilo, que acabei deixando algumas lágrimas rolarem por meu rosto.
- Eu estou muito feliz em ter você de volta. – concluiu ele tentando não chorar.
Respirei fundo, passando a manga da blusa no meu rosto, enxugando as lágrimas.
- Obrigada, - consegui dizer olhando para ele – você não sabe o quanto ouvir isso me deixa feliz.
Mesmo querendo chorar, eu consegui sorrir, e ele pareceu muito surpreso com isso, porque desde que eu voltei, eu ainda não tinha dado um sorriso tão sincero como aquele, e acho que ele percebeu isso.
- Mas sobre ser lésbica, - continuei – eu não sei, eu me sinto confortável com essas roupas, com esse corte de cabelo, me sinto mais eu, sabe?
Ele me olhava atentamente.
- Mas eu não sei, - continuei – elas tem me chamado atenção ultimamente, mas eu nunca fiquei com uma, então, eu não sei.
Ele afirmou pegando um sanduíche da sacola de papel que tinha dentro da mochila dele. Dei mais uma mordida na maçã, pegando um livro de minha mochila em seguida, que se chamava "as vantagens de ser invisível" e comecei a lê-lo.
Era um dos livros que estava em minha estante, e que provavelmente tinha sido Vivian que havia escolhido. Ele falava sobre umas cartas que um garoto escrevia para um “amigo", ele era meio deprimente, mas eu estava gostando dele, as vezes sentia como se tivesse sido eu quem o tivesse escrito.
Dei outra mordida na maça enquanto virava uma página, estava tão distraída com o livro que me assustei quando as amigas de Alex passaram correndo na nossa frente.
Elas estavam jogando uma bola pequena entre elas com a mão e isso fez com que uma delas quase caísse em cima de nós. Eu e Peter nós olhamos, por um momento acho que pensamos a mesma coisa, de que elas queriam mesmo chamar nossa atenção.
Elas continuaram jogando até que a bola caiu em cima do meu colo.
Vi que Alex havia sido a escolhida para pegá-la de volta, e levantei com a bola na mão.
- Desculpa, – disse ela se aproximando meio sem jeito – as vezes elas exageram no arremesso.
Entreguei a bola na mão dela, e percebi que boa parte das pessoas ali próximo, estavam nos olhando.
- Então, vizinho, - começou ela - seu nome é Sam, certo?
Afirmei com um gesto de cabeça.
- É Sam de Samuel, ou...?
Pude perceber que Peter segurou uma risada ao ouvir aquela pergunta, e isso me fez segurar o riso também.
- Não, - respondi colocando uma mão no bolso do jeans – Só Sam mesmo.
Ela parecia meio sem jeito passando a bola de uma mão para a outra.
- Meu nome é Alex, - informou ela fazendo uma careta depois – mas isso você já sabia.
Ela parecia um pouco nervosa.
- Quer jogar com conosco? – perguntou por fim.
Neguei mostrando o livro em minha mão.
- As vantagens de ser invisível? – perguntou ela – É bom?
- Estou gostando. - respondi, fazendo-a colocar uma mexa do cabelo atrás da orelha
- Legal, - disse ela ainda me olhando – poderia me emprestar depois?
- Claro, - respondi – assim que eu terminar.
Ela afirmou, se virando em seguida.
– Alex? – chamei, fazendo-a me olhar de novo – É Alex de Alexandra ou...?
Ela sorriu, e isso me deixou um pouco boba de novo, aquele maldito sorriso sempre conseguia me deixar desconcertada.
-Só Alex mesmo. – respondeu ela me imitando, fazendo-me sorrir também
- Vamos Alex! – chamou uma de suas amigas – O Caio tá vindo!
- Caio? – pensei, já havia ouvido aquele nome antes
Ela revirou os olhos, me olhando em seguida como quem parecesse super empolgada, só que ao contrário, e depois voltou para suas amigas.
Um garoto alto e magro, com uma jaqueta preta por cima da farda da escola, tinha chegado lá. Seu cabelo preto lambido pra trás e um alargador na orelha chamava um pouco a atenção. Ela se aproximou dele e na mesma hora ele a abraçou.
Ela me olhou sobre o ombro dele e por um segundo retribui o olhar.
Mas aí ele a beijou, e isso meu estômago revirar. Sentei de volta com Peter que parecia não ter gostado muito de me ver falando com ela.
- O que foi? – perguntei
- Você tem mais jeito com elas do que acha, - disse ele – se você não curtir garotas, eu sou o Peter Pan.
Revirei os olhos voltando para a página onde tinha parado e retomei a leitura.

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