Alguns dias se passaram depois daquele incidente, eu evitava sair do quarto para não dar de cara com John, e isso fazia Vivian vir às vezes deixar comida pra mim no quarto quando ele estava em casa, mas mesmo com fome, eu não conseguia comer e quando conseguia, acabava colocando tudo pra fora.
Peter sempre tentava me animar falando sobre algum jogo que ele estava jogando, ou falando sobre ele e Diana, mas mesmo querendo que ele fosse feliz, eu sentia inveja do que ele havia conquistado.
- Como você está hoje? – perguntou ele sentando em minha cama
Dei de ombros, mas estava me sentindo muito desanimada.
- Eu tenho algo para te mostrar – disse ele tirando um envelope de dentro da mochila e me entregando em seguida.
Dentro dele, havia fotos do dia da festa e no meio delas, tinha uma onde eu e Alex estávamos nos beijando. Aquilo fez meu estômago revirar, me deixando ainda mais desanimada.
- Eu queria pedir desculpas a você, - começou ele – a culpa foi minha em aproximar vocês desse jeito.
Guardei as fotos novamente no envelope, mas antes que eu tivesse a iniciativa de devolver, ele fez um gesto para que eu ficasse com elas.
- Você tem visto ela? – perguntei colocando o envelope de baixo do meu travesseiro
Ele negou fechando a mochila, se levantando em seguida.
- Você vai pra onde com essa mochila? – perguntei ao ver ele grudado nela, ainda não era nem 8 da manhã e ele já estava arrumado para sair.
Ele sorriu meio sem jeito
- Vou ver a Diana, – respondeu ele – talvez eu durma por lá.
Ele piscou pra mim, e em seguida me deixou sozinha.
Algumas horas depois, eu estava quase cochilando quando ouvi alguém bater na porta do quarto.
- Sam? – chamou ela – A doutora Fernanda está aqui, estamos entrando.
Vi Vivian abrindo a porta para a minha psicóloga e quando ela entrou, Vivian a fechou me deixando sozinha com ela.
- Posso? – perguntou ela apontando para a cadeira.
Afirmei sentando em minha cama, e ela sentou na cadeira.
- Não sabia que atendia particular – disse, olhando para ela
- Às vezes é preciso, - disse ela cruzando as pernas – mas então, - continuo Fernanda - como foram os dias depois da nossa última consulta?
Eu não sabia bem por onde começar, então acabei seguindo a ordem dos acontecimentos.
Contei sobre a ideia de Peter, o namoro de mentira com Alex, o “termino” na festa e a briga com John. Como se não já bastante tudo isso, tinha os questionamentos sobre minha orientação sexual, que parecia estar o tempo todo em debate.
Ela ficou me olhando como se tivesse recebido muita informação pra pouco tempo, ela sabia que eu não andava contando tudo a ela nas sessões anteriores, talvez ela estivesse demorando pra processar tudo aquilo.
- Sam, - começou ela - o que eu tenho observado, é que você está lutando contra algo que não tem como vencer, porque você sabe quem você é, mas talvez não queira falar isso em voz alta. Acho que partir do momento que você abraçar o seu "eu" verdadeiro, você irá se sentir muito melhor com isso.
- Não entendi. - disse, olhando confusa para ela
- Quando você se olha no espelho, - começou ela - o que você vê?
Fiquei um tempo tentando entender aonde ela queria chegar. Sempre que me olhava no espelho, eu via a mim, uma garota meio magrela cheia de cicatrizes e com o cabelo sempre bagunçado.
Mas ainda não conseguia entender o motivo de sua pergunta.
- Sam, - disse ela chamando minha atenção - você se apaixonou por uma garota, e brigou com seu irmão porque ele não te aceita como você é.
Foi aí que a ficha caiu, todas as vezes que me perguntavam se eu gostava de garoto ou de garota, eu dizia que não sabia, mas que eu era uma garota que gostava de se vestir de um jeito confortável, e que era só isso. Mas não era só isso afinal, eu nunca havia me interessado de fato por um garoto, nem mesmo antes do acidente, os últimos meses era prova disso. Eu havia me apaixonado por Alex, não só pela pessoa maravilhosa que ela era, mas porque eu me atrai por seu corpo feminino, a sensação de seu toque, a forma como ela conseguia me deixar excitada, os pensamentos que ela me causava, eu nunca tive isso por garoto nenhum.
- Eu sou lésbica? - perguntei alto suficiente para eu mesma me ouvir
- Você é? - perguntou Fernanda
- Sim, eu sou lésbica... - repeti, mas dessa vez, afirmando
- Você aceita seu corpo do jeito que ele é? - ela me perguntou
Eu levantei indo até o espelho, me olhando dos pés a cabeça.
- Eu gosto de ser garota, - respondi, olhando pra ela em seguida - eu me sinto uma garota, porém não gosto de me vestir como uma, é estranho, muitas vezes me sinto como uma pessoa imperfeita, como se não me encaixasse em lugar algum.
- Não existe um ser perfeito, Sam. – informou ela – se você pesquisar sobre “tomboy” ou “androgenia”, você vai perceber existem mais pessoas como você do que pensa.
- Tomboy... – pensei – Peter já tinha dito esse termo antes.
Mais uns dias se passaram, como de costume, Vivian já tinha ido deixar meu almoço no quarto, mas como sempre, eu não consegui comer.
Peguei as fotos que estavam dentro do envelope embaixo do travesseiro, e olhei uma por uma. Tinha várias fotos minhas com Alex na verdade, mas a do beijo, era a mais intensa de todas.
Olhei para meu quadro de recados, e o desenho dela ainda estava lá, não fazia mais sentido eu continuar com aquele projeto, eu sei. Mas...
Sai da cama indo para a cadeira ficando de frente a mesa do computador. Eu havia feito pesquisas sobre como fazer uma coruja com as peças de computadores, mas não tive muito sucesso com isso, pesquisei diversas formas de fazer uma coruja de maneira artesanal, e a única que pareceu não tão complicada, foi usar uma parte de placa mãe como base para criar um molde pequeno no formato do desenho que ela havia feito. Assim, consegui criar uma espécie de pingente que poderia ser usado como um chaveiro.
Quando dei por mim, já tinha escurecido. Sabia que naquele horário John não estaria em casa, então desci indo até cozinha com o prato de comida que Vivian havia preparado totalmente intacto na mão.
Sabia que quando eu não comia, ela juntava com os restos e colocava em uma vasilha para os cachorros que viviam na rua, nada nunca se estragava naquela casa.
Ouvi o barulho de um carro estacionando em frente de casa e fui até a varanda ver quem era.
John desceu dele abrindo o porta malas e em seguida, pegou uma caixa levando-a até a garagem, depois voltou e pegou mais uma, e depois mais uma.
Queria tentar conversar com ele sobre o que tinha acontecido, mas tudo o que eu fiz foi ir até o carro e pegar uma das caixas, ajudando ele a descarregar o carro.
Ele me olhou, e apenas continuou com o que estava fazendo. Quando peguei a última caixa, ele fechou o porta malas e caminhou até a entrada da garagem.
Ele também parecia querer conversar, mas como eu, não sabia por onde começar.
Sai da garagem de cabeça baixa, e antes de chegar na varanda, uma bola de basquete caiu perto de meus pés, indo até a cerca. Fui até ela pegando-a, e olhei para a garagem, John estava lá parado como se esperasse que eu fizesse algo.
Voltei para a frente da garagem meio sem jeito, e olhei para a cesta acima da abertura do portão, me preparei, e arremessei, fazendo uma cesta de 3 pontos. Ele pegou a bola após isso, e acabamos começando a jogar juntos.
Já estava de 12 a 9 pra ele, e eu já estava pedindo tempo, como eu não estava me alimentando direito, eu não estava com forças pra continuar, e acabei me sentando na grama tomando fôlego, enquanto ele ria com a bola na mão.
- Você já foi melhor que isso, - disse ele, sentando ao meu lado em seguida – precisa voltar a comer direito.
Ficamos calados por um tempo depois disso, olhando para as pessoas passando na rua, até que ele me olhou.
- Você está bem? – perguntou ele um pouco apreensivo
Retribuir o olhar afirmando em seguida.
- Se você quiser conversar, - começou ele – sobre o que aconteceu, ou...
- Está tudo bem, - disse, interrompendo-o – irmãos brigam o tempo todo.
Ele parecia muito arrependido, mas concordou com o que eu falei, e acabou voltando a olhar pra rua.
- Quer uma cerveja? - perguntou John, um tempo depois
- Não, - respondi, dando um sorriso meio fraco - eu não bebo cerveja.
- Eu não vou lhe dar vodka, - disse ele voltando a me olhar – então, quer uma Coca-Cola?
Retribui o olhar mais uma vez, mas agora, mesmo com aquele sorriso no rosto, eu estava chorando. E não sabia explicar o porque.
- Vem, - chamou ele colocando a mão em meu ombro – vamos entrar.
Afirmei, passando a mão no rosto, tentando afastar aquelas lágrimas, e em seguida entramos em casa. Quando Vivian e Peter chegaram, ambos olharam para nós dois sem acreditar no que estavam vendo.
- Perdemos alguma coisa? - perguntou Vivian sem entender
Estávamos e sentados a mesa, eu com uma latinha de coca cola e ele com uma de cerveja na mão.
- Sam perdeu de 12 a 9 pra mim no basquete – informou John
- Sam? - pensei, ele nunca havia me chamando assim antes.
Agora era a hora de dizer a eles, quem eu era. Não sabia porque, mas sentia que aquele era o momento perfeito pra isso, então levantei da cadeira chamando a atenção de todos.
- Eu preciso falar uma coisa pra vocês. - disse, nervosa o suficiente pra minhas mãos começarem a tremer
- Algum problema? - perguntou Vivian ficando preocupada
- Não, na verdade não, eu acho. - respondi, e logo continuei - Eu...
Eles me olhavam com muita atenção.
- Eu sou lésbica. - assumi, esperando que começasse a briga
Mas não foi isso o que aconteceu. Vivian sorriu e veio até mim, me abraçando. Peter também sorria, como se estivesse orgulhoso de mim, já John, levantou da cadeira me olhando um pouco mais sério.
Vivian ficou atrás de mim, segurando em meus ombros, como quem dissesse “estou com você, não importa o que aconteça”. Fechei os olhos achando que meu irmão iria me bater de novo, mas ele apenas me abraçou, me deixando imóvel, e em seguida me olhou.
- Você precisa cortar esse cabelo. - disse ele bagunçando o mesmo, com um sorriso que eu não via há anos.
Vivian parecia querer chorar, mas acabamos todos começando a rir por causa do comentário, e isso fez meu peito se encher de alegria, pois eu estava finalmente, me encaixando naquela família.
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IM-PERFEITA
Romance"Após sofrer um acidente de carro, Sam se perdeu no mundo. Sem família e amigos, ela precisou assumir uma personalidade que pudesse fazê-la sobreviver aquela vida na rua. E quando foi encontrada, começou a sentir que não se encaixava mais em lugar n...