A geleira

3.6K 205 4
                                    

O dia amanhecia mais frio que Dylan esperava, por isso, quando abriu os olhos e percebeu que a cabine de Spencer estava gelada demais, ela levantou a cabeça para ver se havia um edredom aos pés da cama. Como havia um edredom ali, ela fez todo um malabarismo, empurrando o corpo de Spencer para a cama, e levantou, com todo cuidado, para pegar o cobertor e cobrir o corpo da menina.

Quando ouviu a batida de leve na porta, imaginou que era tarde mais para algum tipo de trabalho - mas também, quando se estava perto de tanto gelo, o trabalho era constante. Esfregou o rosto, passando a mão pela blusa antes de caminhar de leve para a porta, se certificando que Dylan ainda dormia.

Quando abriu uma fresta da porta, viu Curtis em pé, com cara de poucos amigos e acordado demais, usando um casaco grosso e uma cara de mau.

- Que horas são?

- 4 e meia. - Ele falou. - Temos problemas. Está vestida?

- Sim.

- Venha comigo.

Dylan saiu do quarto sem pensar, encostando a porta, e já ficando séria vendo Curtis caminhar rapidamente pelo corredor.

- Deus, está congelando aqui! - Ela reclamou.

- É? Espere até ver lá em cima da Ponte. - Ele brincou sem muito humor, começando a colocar o corpo no caminho correto.

- Você está me assustando, Curtis.

- Você ainda não viu nada...

Ele levou a mulher o resto do percurso em silêncio, até chegarem na sala de controle e Curtis apertar um botão que ligou um enorme farolete na frente do navio. A visão de Dylan se encheu de branco, um branco forte, um paredão, cheio de vida e brilho.

- Isso... é... o que eu estou... pensando que... - Ela deu alguns passos para frente, na direção do vidro da sala de controle, sem acreditar nos seus olhos.

- Se moveu mais do que havíamos previsto. Isso é normal?

- Não. - Dylan bufou. - Não, não é normal. Onde estamos?

- Longe de onde isso aqui deveria estar. - Ele falou andando pela sala para pegar o mapa de navegação. - O motor dois morreu há uma hora e meia. Avançamos pouco menos de 700 km.

- Quanto tempo? - Dylan quis saber se virando para o amigo para pegar o mapa das mãos dele.

- Honestamente? Não nos vejo saindo daqui antes do natal. - Foi sincero.

- Merda... - Ela começou a avaliar o mapa de forma eficaz. - Isso nos coloca mais fora do curso do que eu imaginava...

- É possível algum dado útil aqui? - Curtis perguntou.

- Sempre damos um jeito, não é mesmo, Curtis?

Dessa vez Curtis não tinha certeza, a água vinha esquentando tanto, e o aquecimento global piorando tanto, que eles sempre repetiam que ano que vem ia ser melhor - e isso nunca era verdade.

- Estamos perto demais, Dylan. - Ele falou sério.

- Podemos ir para a face sul. - Ele comentou. - O paredão é menor e estaremos mais seguros das ondas de desabamento.

- Dylan... estamos falando de uma geleira de 300 Km. - Ele olhou sério para ela. - Nós estamos na face norte, perdemos um motor. As chances de chegarmos na face sul....

- Só nos tire daqui. - Ela falou olhando para o amigo. - Nos tire daqui, Curtis. Nos coloque aqui... - Apontou para o lado no mapa. - É possível chegar na face oeste?

- Talvez. - Ele considerou. - Não garanto.

- É o suficiente para mim. - Ela concordou. - Avise os homens que vamos ficar aqui um tempo. Quando amanhecer, eu vou descer na geleira para colher algumas amostras.

- NA FACE SUL? - Ele quase berrou com o susto. - Por Deus, Dylan... está maluca?

- Eu vou ficar bem. Eu tenho mais experiência no gelo do que qualquer um de nós.

- Não no paredão. Não tem!

- Precisamos de amostras, Curtis.

- Você é maluca, sabia disso? - Ele passou a mão no cabelo de forma nervosa. - Não vá se matar, pelo amor de Deus!

- E quando é que eu fiz isso a última vez? - Ela brincou, sentando-se pesado na cadeira do comandante e dando de ombros. - Talvez a aposentadoria em Labrador não seja tão ruim assim.

Curtis olhou para a amiga. Sim, eles eram pessoas do mar. Pessoas que davam importância para coisas simples - calor e um bom copo de café. Infelizmente, os dois não tinham mais 20 anos. Eram pragmáticos demais, salgados demais.

- Talvez não seja. - O homem concordou. - Não quer voltar para a cama? Não é como se a gente fosse sair daqui nas próximas horas.

- Não. Tudo bem. - Ela negou. - É melhor eu ficar na ponte, essa coisa pode se mover mais rápido que você pode imaginar. Não é bom que esteja sozinho.

- Eu tirei você da cama, com Spencer. - Ele mordeu os lábios. - Eu não queria...

- Você não interrompeu nada. - Ela prometeu. - Dormimos de roupa, depois dela me peitar com um ar de quem tem 12 anos.

- Quando é que ficamos tão velhos? - Ele riu, vendo a amiga sorrir também. - Você ainda pode casar, Dylan. Sair dessa vida.

- Não há vida sem isso aqui. - Ela disse suspirando feliz. - Não para pessoas como nós.

- O que eu quero dizer, é que você pode ter algo. Sólido.

- Pessoas como nós são como uma maré, Curtis. Se enchem e se esvaziam, acompanhando a pressão da lua. - Comentou. - Spencer é uma ilha. Uma ilha em um oceano que está em movimento.

- Não curto metáforas. - Ele não deu bola. - E você não se importa com ninguém desde Summer. Talvez esteja na hora, Dylan.

- Olha só quem fala! - Ela o acusou.

- Nem todas as mulheres do mundo são a Summer.

- Não, não são. Algumas são eu. - Comentou. - Algumas simplesmente são eu.

- Eu sinto muito por tudo que aconteceu com você e com Summer, Dylan. Talvez eu nunca tenha lhe dito isso, mas eu sei o quanto você sofreu com tudo. Eu sei que era importante para você.

- Você devia conhecer uma mulher, Curtis. Fazer um filho dela. - Dylan disse com a voz agridoce. - Você tem razão, não há nada aqui além de gelo e solidão.

- Vá tomar um banho e por uma roupa mais quente. - Curtis exigiu. - Temos muito trabalho para o dia hoje. Tome um café.

- Eu vou te dizer o que seguinte, por quê você não faz isso e eu espero por você aqui na ponte? - Ela comentou. - Eu estava dormindo, você está acordando há muito mais tempo do que eu.

Curtis olhou para ele, e para o manche, preocupado demais. Felizmente, ele sabia que podia confiar em Dylan, para qualquer tipo de decisão - mesmo as piores em um deslizamento do paredão.

- Tem certeza?

- Claro que tenho. Ah, me traga um café quando voltar.

- Café. - Ele concordou. - Creme?

- Hummm... preto. Sem açucar. - Ela pediu.

- Começou o dia bem sombria, hein Dylan. - Ele brincou. - Ok. Preto sem açucar.

Ponte para lugar nenhumOnde histórias criam vida. Descubra agora