Vila Magnólia, São Paulo -11.10.1989
Querido desconhecido da estação de trem,
Essa é a primeira vez que escrevo para alguém que não conheço. Para ser sincero, é a primeira vez que escrevo qualquer coisa. Talvez seja estranho tentar encontrar as palavras certas para alguém que nunca as lerá, mas preciso lhe informar o quanto você me incomoda.
Você provavelmente não sabe, mas existem milhares de livros bons e a literatura não se resume apenas aos romances policiais que você lê sentado naquele banquinho de madeira caindo aos pedaços. Por favor, eu imploro para que você leia Hamlet ou Macbeth. Imploro para que você tire a cara desses exemplares de Edgar Allan Poe ao menos uma vez.
Seja franco, você já os leu milhares de vezes.
Se eu tiver sorte, posso até encontrá-lo ouvindo The Smiths num bairro próximo ao meu. Talvez eu diga um "oi" amanhã, ou pergunte seu nome. Talvez até empreste alguma peça de Shakespeare ou tente persuadi-lo a ouvir minhas bandas favoritas.
Talvez eu faça isso. Ou, talvez, eu apenas fique o observando à distância. Como faço todos os dias.
E depois vá embora.
― ◆ ―
Quando se trata de escrever, não sou nenhum George Orwell. E Bernardo sabe disso. É ele quem deveria estar escrevendo essa história, ou escrevendo qualquer outra coisa, porque é isso que o garoto ama fazer. Também foi ele quem me ensinou a usar uma máquina de datilografia. Por isso, eu não me importo de escrever por nós dois.
Essa história começa antes de Bernardo, no entanto. Começa com um Caio Vidal correndo à caminho da escola estadual, ainda mastigando parte do café da manhã e com os cabelos grudando na testa. Essa manhã, só tive tempo de calçar meus tênis All Star recém-adquiridos numa lixeira perto de casa e sair, quase à trote, pelas ruas de Vila Magnólia. Tão apressado como estou, talvez as pessoas pensem que estou atrasado para a aula. Ou que simplesmente sou maluco. Mas não é nada disso. Ainda tenho tempo de sobra. Também não estou correndo porque estou ansioso para ir ao colégio, e sim para o que vem depois dele.
Não tenho amigos naquele lugar, e isso fica mais do que óbvio quando sento na mesma carteira de sempre e deito a cabeça em meus braços. Não há ninguém esperando por mim. E eu também não espero por ninguém.
A coisa toda começa antes que eu tenha a sorte de adormecer. Em alguns meses será a nossa festa de formatura e os alunos logo começam a conversar sobre o grande evento, querendo se gabar da primeira coisa ao seu alcance. Enquanto as meninas exibem sua popularidade através de vestidos caros, apontando-os em capas de revistas, os meninos se vangloriam das garotas que descolaram para o baile. Eu não vou, é claro. Não porque eu seja um desses adolescentes rebeldes sem causa. A grande verdade é que meus pais gastaram o valor reservado para a minha formatura com as dívidas da oficina e eu não posso realmente culpá-los por isso.
Todos parecem animados. Até a professora Sônia parece um pouco mais alegre. Bom, pelo menos a sua voz parece, já que tudo que consigo ver é a penumbra que rodeia os entalhes na mesa de madeira, naquele espaço tão pequeno onde minha cabeça se recusa a permanecer completamente deitada. Quando me levanto levemente, posso ver as palavras riscadas em inglês e elas parecem ter um significado incrível, mesmo que eu não entenda tão bem o idioma.
"We can beat them, just for one day
We can be heroes, just for one day"
(Nós podemos vencê-los, apenas por um dia
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Querido Bernardo
RomantikSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...