Vila Magnólia, São Paulo — 09.11.1989
Querido Bernardo,
Hoje o muro de Berlim foi derrubado. Literalmente.
O mundo inteiro parou para assistir aos vinte e oito anos sofridos de separação ruírem junto com os destroços; aos berlinenses de ambos os lados que transformavam as duas Alemanhas em uma só, vibrando. Felizes. Eufóricos. Dançando e martelando-o com picaretas, mesmo que de modo simbólico.
Esse é um daqueles raros momentos em que eu me sinto presenciando um momento histórico. Talvez todos já o tenham esquecido daqui a alguns anos, enterrando todo esse clima festivo em algum lugar na memória do mundo. Talvez não. De todo modo, acho que nunca vou me esquecer de como a minha mãe se sentou de pernas cruzadas em frente à televisão, ainda usando a touca florida de plástico que usa durante o banho. Ou como meu pai e eu gritamos e batemos palmas para todos aqueles desconhecidos festejando a reintegração do seu país. Talvez, num futuro próximo, as crianças estudem sobre esse dia nas aulas de História. Talvez não.
Amigos ficaram separados por anos, Bernardo. Casais apaixonados com um muro impedindo que eles sequer dessem as mãos. E, por um momento, eu só pensei em como seria legal se todos os muros de indiferença e preconceito desabassem. Quem sabe um dia eu e você possamos andar de mãos dadas na rua, ou que eu possa roubar um beijo de despedida, sem que a rua esteja deserta e escura o suficiente para que ninguém perceba que somos dois garotos. Esse é o tipo de muro que eu quero quebrar no futuro. Com você.
Porque eu destruiria todos os muros do mundo se você estivesse do outro lado.
『▪▪▪』
Carlos é péssimo em se esconder.
O clube de teatro espreita por trás de arbustos espessos do quintal dos Bittencourt, trocando cotoveladas quando alguém fala muito alto. Agachados no nosso esconderijo não tão secreto assim, nós nos sentimos como verdadeiros heróis em missão de resgate. Mas Carlos é o tipo de herói alto e comprido demais para se camuflar atrás das folhagens, deixando o topo da cabeça e as canelas aparecendo vez ou outra, como uma criança que não sabe brincar de esconde-esconde.
De todos os heróis, Felipe é o mais preparado. Ele trouxe um binóculos e uma peruca ruiva que já está toda descabelada e torta, com direito a folhas presas aos fios avermelhados e uma pétala solitária de hortênsia. De vez em quando, o rapaz solta risadinhas diabólicas enquanto Ben timidamente repassa o plano. A verdade é que, bem... Não temos um plano muito bom.
Babi segura um balde vermelho de plástico pela alça amarela, evitando balançá-lo demais por causa dos ovos. Eu esmago um pacote de farinha numa espécie de abraço frouxo e Bernardo apoia uma das mãos em meu braço, a cabeça quase deitada no meu ombro.
Estamos cobertos com bonés, chapéus ou perucas nada discretas. Hannah ostenta um daqueles óculos em formato de coração que estão na moda, e Babi está usando um penteado diferente nesta tarde. Tudo que temos são disfarces ruins, ovos, farinha e uma vontade enorme de recuperar o nosso querido Henrique. Esperamos que seja o suficiente.
— A cortina se moveu — alerta Carlos, afastando alguns ramos do arbusto para enxergar melhor. — Eu vi. Eu juro por Deus. Olha lá, tá se mexendo!
Felipe coloca os binóculos.
— Onde, Carlos? Onde?
— No andar de cima — ele responde, convicto, e todos nós erguemos o quadril para observar, nossos joelhos achatados contra a terra. — Ali, ali. Mexeu de novo! Viram?

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Querido Bernardo
RomanceSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...