Vila Magnólia, São Paulo — 23.10.1989
Querido Bernardo,
Se um dia você chegar a conhecer Ben, diga realmente o que pensa. Ele não gosta de mentiras. E, mais do que isso, o garoto precisa se sentir seguro. Deve ser esse o motivo para que o baixinho tenha adotado o clube de teatro como um segundo lar.
Por isso, diga a ele que seu cabelo está legal ou que suas meias não combinam com as calças curtas, ou até mesmo o quanto suas pinturas são incríveis. Não importa. Diga qualquer coisa, desde que seja de coração, e o garoto certamente o adotará como um irmão também. Bagunce seus cabelos castanhos ou cante com ele sua música favorita. Ele costuma apreciar essas pequenas coisas.
Foi Carlos quem o encontrou, sentado no meio-fio de uma rua em sua vizinhança como se estivesse perdido. O grandalhão disse que chorou junto com ele quando viu as pinturas jogadas aos seus pés. Uma delas era apenas uma tela completamente negra. Um misto de confusão, tristeza e um Ben prestes a desistir. Mas Carlos conseguiu salvá-lo, e o garoto não desistiu. Não deixou que sua consciência se tornasse um quadro enegrecido, mas que ela se tingisse com todas as cores mais bonitas.
Assim, nós também decidimos adotá-lo como um membro do clube. Como um irmão. E prometemos salvá-lo todos os dias.
『▪▪▪』
Não beijar Bernardo naquele dia foi uma das coisas mais difíceis que já fiz.
E, acredite, se eu juntasse um apanhado de coisas penosas que consegui realizar, isso me renderia mais de dez páginas de cartas endereçadas ao garoto miúdo da estação de trem.
Começaria com o desafio semanal onde não posso mentir. A partir daí, provavelmente eu contaria sobre a vez em que eu e Carlos assaltamos aquele supermercado, ou quando Felipe me desafiou a invadir a casa de sua vizinha rabugenta só para que, por motivos puramente científicos, eu deixasse sua cueca favorita pendurada no varal da pobre mulher. Abrigar Theo no meu quarto pela primeira vez seria uma delas. Estrelar o meu primeiro musical também.
No entanto, quando aqueles olhos grandes e bonitos se abriram, surpresos, tudo ficou ainda mais complicado. Tentei me afastar o mais delicadamente que consegui vendo as luzes da cidade dançarem nas íris escuras. Era tão bonito... E, ao mesmo tempo tão solitário. Porque eu senti medo, e meus dedos estavam tremendo quando soltei o seu rosto. Senti medo porque, de toda as sensações, eu nunca havia experimentado sentir nada tão dúbio, tão incerto.
— Caio?
Quando ele disse o meu nome, eu era um misto de dúvidas. Eu me sentia tão completo e, ainda assim, tão vazio. Tudo porque aquele falso beijo não era suficiente. E mesmo que eu quisesse emoldurar seu maxilar outra vez, desejando saber como seria se aquela distância não existisse, não possuía forças para sustentar seu rosto sem que ele percebesse o quanto eu estava trêmulo.
E eu não queria que Bernardo soubesse que eu estava tão perdido.
Por isso, quando ele chamou meu nome outra vez, eu corri. Apanhei a coleção de filmes clássicos guardados numa sacolinha de supermercado e dei-lhe as costas, desaparecendo numa esquina escura próxima à cabine telefônica. Eu não estava preparado para sentir, e aquilo me assustou.
No fim, eu apenas fugi.
Como o covarde que sou.
― ◆ ―
Apoio minha cabeça em meus braços, observando a garrafa de Coca-Cola na mesa do refeitório, as gotículas de água escorrendo pela lateral. Como um idiota, eu a seguro e a trago para perto do rosto, tentando me aliviar do calor de uma quinta-feira ensolarada ao sentir a superfície gelada. Eu cantarolo a música tema de um comercial antigo, sem me importar que alguém escute. Afinal, tanto faz, não estou ali para impressionar ninguém.

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Querido Bernardo
RomanceSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...