Capítulo 14

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Vila Magnólia, São Paulo — 05 11.1989

Querido Bernardo,

Theo tinha apenas três anos quando aprendeu a andar de triciclo. Andar, literalmente, porque o pequenino ainda não conseguia pedalar. Tudo que conseguia fazer era se apoiar nos guidões do brinquedo e empurrá-lo com as perninhas curtas. Ele se achava o dono do mundo porque conseguia montar numa bicicleta infantil e as outras crianças não. Também foi quando ele aprendeu a debochar.

Debochava até das senhorinhas do bairro, que penavam para subir alguns lances de escada. Theo subia em poucos segundos. Mesmo precisando usar as duas pernas de cada vez e às vezes se apoiando na parede, ele era bem rápido. Usava um balde vermelho no topo da cabeça e erguia sua pequena pá de areia azul como se fosse o rei do parquinho, tudo porque conseguia subir e descer pelo escorregador mais rápido do que qualquer um dos filhos dos vizinhos. Debochava e ria de qualquer coisa, mesmo com todos a lhe dizerem que era errado. Um atrevido!

Tinha uma coleção de canetinhas, lápis de cor e gizes de cera que carregava para lá e para cá. Com seu desenvolvimento intelectual a todo vapor, ele se empenhava em se tornar um grande artista, esboçando desenhos duvidosos da mamãe, do papai, de bolas, carrinhos e até mesmo de seus bonecos favoritos — eu e Sérgio, obviamente. Sabia até colorir os seus desenhos, mas por algum motivo insistia em pintar as árvores de laranja, porque dizia que elas ficavam mais bonitas do que as verdes.

Sabia contar até dez, e também era incansável quando se tratava de perguntar o nome dos objetos. Era muito curioso também. Gostava de pegar todos os livros que encontrava na minha casa e espalhá-los pelo tapete da sala, passando a tarde toda fingindo que conseguia ler cada um deles. Era bastante óbvio que ele gostava mesmo era das figuras. Por isso, quando ele fez quatro anos, dei-lhe de presente um livro infantil com milhões de figuras para colorir. Theo se entreteve rabiscando várias e várias cores por três dias seguidos, e depois simplesmente se esqueceu dele. Disse que estava muito adulto para brincar de colorir.

Ontem, por algum motivo, ele decidiu voltar a desenhar. E eu nunca fiquei tão contente em ver rabiscos de um garoto com olhos grandes e um coração no lugar da boca. Aquilo me deixou realmente feliz.

Porque ele desenhou você, Bernardo.

『▪▪▪』

Miguel tinha uma jaqueta jeans jogada sobre um dos ombros e um pirulito cor-de-rosa na boca quando eu o vi pela primeira vez. Andava com as botas arrastando no piso do banheiro, provocando um barulho irritante, forçando a borracha da sola contra o piso de propósito. Já era um pé no saco ter me escondido na última cabine para me afastar dos insultos. Eu não precisava de outro idiota para me dizer o quanto eu estava imundo com toda aquela graxa espalhada pela roupa.

Por isso, quando ele abriu a porta do último sanitário, não pensei duas vezes antes de mandá-lo cair fora dali e me deixar em paz.

— Se você veio tirar sarro de mim também, então pode ir embora. — Ergui o braço até meus olhos, secando as lágrimas com a manga do casaco. Estava quente e ensolarado lá fora, mas era o único jeito de tentar esconder a sujeira na camiseta do meu uniforme. — Já estou me sentindo um lixo o suficiente sem que você me diga nada — respondi, fungando baixinho.

Minha mochila pendia de uma das minhas pernas dobradas, mas isso não impediu que o garoto a empurrasse delicadamente para sentar-se ao meu lado com as costas apoiadas na parede. Ele simplesmente arrancou da boca o doce e o grudou na parede, em cima dos rabiscos coloridos de estudantes rebeldes. O pirulito ficou ali, colado acima de um poema qualquer sobre palavrões e garotas de saias curtas, ignorando a todo custo a lei da gravidade.

Querido BernardoOnde histórias criam vida. Descubra agora