Capítulo 3

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Vila Magnólia, São Paulo — 16.10.1989

Querido Bernardo,

É um prazer, finalmente, conhecer você.

Acho que nunca lhe contei sobre como o clube de teatro me salvou. Na verdade, acho que será o primeiro a saber. Aquele casebre meio abandonado num bairro simplório de Vila Magnólia não é apenas um passatempo. É um refúgio e, ao mesmo tempo, um lugar onde posso ser eu mesmo, livre de julgamentos. É o lar que nunca tive, onde não me enxergam como o Caio que foi à escola todo sujo de graxa. Onde, de vez em quando, preciso interpretar um personagem que não sou.

O importante é que, para todos aqueles idiotas, no fim do dia, sou apenas Caio Vidal. E isso me basta.

Para Carlos e Felipe, sou um imbecil. Sou um garoto gentil aos olhos de Ben, ou até mesmo de Babi. Para Henrique, sou o melhor dançarino da cidade, mas meus professores dizem que sou o pior. E, sinceramente, está tudo bem. Porque sou todas essas coisas. E não pretendo ser outra pessoa.

Por isso, agora me sinto aliviado por poder chamá-lo pelo nome. Não quero que você seja só "o garoto desconhecido da estação de trem". Ou aquilo que as pessoas escolheram para você. Eu só preciso que você seja você mesmo, e enxergue que isso é o suficiente. Você é suficiente.

E eu só preciso que você seja Bernardo.

『▪▪▪』

Eu odeio punições. E mesmo sentado na cadeira solitária no fundo da sala de detenção, minha mente está ocupada com coisas mais importantes do que minha aversão àquele castigo. Não é do meu feitio remoer minhas mágoas enquanto me entrego ao tormento chamado Ensino Médio, então, para variar, começo a remoer a dos outros.

Meus pensamentos se dividem entre Sérgio, o garoto que faleceu três semanas atrás, e as coisas que devo contar a Bernardo em minha próxima carta. Meus músculos das costas se retesam, sentindo o impacto de estar na mesma posição há muito tempo. Então, para combinar com a dor que sinto, escolho a opção mais mórbida.

Não sei muito sobre Sérgio, além de que, talvez, ele não ganhasse mesada o suficiente para comprar pilhas para seu Walkman. Mas uma coisa é certeza: ele tinha bom gosto para tênis. É difícil ouvir algo sobre ele que não seja "Ouvi dizer que ele era um viciado" ou "Soube que ele era um delinquente, envolvido com as gangues de Jardim Alpínia".

Aos olhos dos outros, não quero que ele seja o Rebelde, ou o Drogado. Quero que ele seja Sérgio Gomes. E talvez, para desvendar tudo por trás de sua morte, eu precise da ajuda de um certo garoto apaixonado por romances policiais.

Talvez eu queira brincar de detetive com Bernardo.

E eu estou prestes a me perder na lembrança ainda vívida dos seus olhos grandes avaliando meu rosto pela primeira vez, mas alguém interrompe meu martírio, abrindo a porta da sala e caminhando na minha direção de modo quase saltitante, como se ser um adolescente não fosse assustador o suficiente. É Miguel Arantes, um rapazinho de olhos felinos e cabelos desgrenhados. O visual é sempre o mesmo. Uma camiseta com o Mickey Mouse estampado, por baixo de uma jaqueta jeans. Nas costas, a frase bordada em preto diz: "We live just once".

— O que você fez dessa vez? — ele pergunta, se apoiando na parede ao meu lado.

Afasto uma mecha de cabelo que cobre um dos meus olhos, soprando-a para longe.

— Matei aula. Duas vezes. — Ergo dois dedos no ar, arrancando-lhe uma gargalhada. — A primeira foi de propósito. A segunda não foi exatamente intencional. Eu não teria faltado à aula se não fosse por alguns idiotas.

Querido BernardoOnde histórias criam vida. Descubra agora