Capítulo 19

57 13 0
                                    


Vila Magnólia, São Paulo — 10.11.1989

Querido Bernardo,

A primeira vez que vi dois homens se beijando foi num filme chamado Asas, de 1929. Provavelmente a primeira obra cinematográfica da história a retratar um beijo gay, e também o primeiro filme mudo a ganhar o Oscar de Melhor Filme. Buddy Rogers e Richard Arlen interpretavam dois pilotos de combate da Primeira Guerra. Eu tinha catorze anos. E a primeira coisa que minha mãe fez foi correr e desligar a televisão o mais rápido que pôde.

O clima na sala havia ficado tão estranho que até meu pai prendeu a respiração. E eu, confuso, não entendia porque eu podia ver cenas de violência, mulheres nuas e casais heterossexuais fazendo sexo, mas era proibido de assistir à dois homens fardados dando um selinho. Não fazia qualquer sentido. Afinal, o que havia de tão errado nisso? O que havia de tão errado em duas pessoas do mesmo sexo se amarem?

Cada vez que penso nisso, meu coração dói. Eu me pergunto se você também sente medo, como eu às vezes sinto. E também me questiono se você esquece todos os olhares críticos ao nosso redor quando está comigo, porque, baixinho, eu esqueço. Eu esqueço todos os meus medos quando estou com você.

Por que o nosso amor incomoda tanto as pessoas, Bernardo?

Eu queria que alguém tivesse as respostas. E, então, eu poderia dividi-las com você.

『▪▪▪』

Enquanto subimos as escadas até o andar de cima, não consigo tirar da cabeça que estamos sendo seguidos por um assassino. Quer dizer, o suspeito de um assassinato.

Tenho vontade de segurar a mão de Bernardo e dar meia volta. De chamar o táxi mais próximo e voltar para casa, mesmo que isso signifique perder a oportunidade de fazer um grande progresso. Estou com medo. Talvez "apavorado" seja a palavra certa. Talvez eu não esteja preparado para me aprofundar em novas informações, para mergulhar de cabeça na verdadeira história por trás da morte de Sérgio.

Eu paro no tapete da entrada quando Breno abre a porta. Só crio coragem para entrar porque Bernardo toca as minhas costas, e eu não tenho escolha senão seguir em frente.

As pernas de Breno estão cobertas por marcas roxas, algumas quase imperceptíveis sob as faixas enroladas nos tornozelos. Quando ele deixa as muletas de lado, o rapaz consegue ir mancando até a cozinha.

— Vocês querem beber alguma coisa?

— Não se incomode — diz Bernardo, abanando o ar.

Concordo com a cabeça.

— Estamos bem.

Mas isso não parece convencê-lo. Ele simplesmente se vira e apanha uma panela para esquentar a água.

— É uma história longa, garotos. Talvez mais longa do que uma xícara de chá pode durar.

E então ele pesca um sachê de chá verde de uma cestinha sobre a pia, sem que possamos sequer recusar.

Bernardo se senta no sofá, mesmo que não tenha sido convidado. Ele parece não se importar com as formalidades. Sofás são feitos para se sentar, afinal. Então ele fica lá, remexendo o zíper do casaco, nervoso. O baixinho olha em volta, e eu aproveito para dar uma espiada também.

Meu coração vai saltar pela boca a qualquer minuto. Essa é a sensação que tenho quando vejo a foto pendurada na geladeira, com alguns ímãs de frutinhas que vendem a preço de banana em qualquer mercado de esquina. A fotografia parece ser a mesma que havia no quarto de Sérgio, se não fosse pela pose diferente. Essa, além de estar inteira, mostra Breno sorrindo um pouco mais. Aquilo me acalma, mesmo que pouco. Os dois parecem incrivelmente serenos ali. Em paz.

Querido BernardoOnde histórias criam vida. Descubra agora