Vila Magnólia, São Paulo — 08 11.1989
Querido Bernardo,
Sérgio sempre foi o vizinho das camisetas dos Beatles e dos papéis de balas. Enquanto o restante dos jovens estava ocupado demais acumulando maços e mais maços de cigarros de marca barata, o garoto construía pilhas e mais pilhas de papeizinhos de balas de iogurte. Ele parecia gostar muito delas. Costumava se sentar sobre o muro pichado na vizinhança com um pacote enorme, observando tudo e todos, suas fitas favoritas tocando nos fones de ouvido plugados em seu antigo Walkman.
Seria legal se tivéssemos trocado mais do que um "Bom dia" carregado de uma educação desnecessária, ou de um "Ei, cara. Seus tênis estão desamarrados" quando ele quase tropeçou nos cadarços dos próprios All Star a caminho do colégio. Porque agora, embora isso possa soar estranho, eu não acho que somos completos desconhecidos.
Eu o conheço, Bernardo. E você o conhece também.
Sinto que somos melhores amigos em algum lugar. Em uma realidade paralela, talvez. Uma realidade onde eu, você e Sérgio participamos do clube de teatro juntos, e onde ele é o melhor ator. Quem sabe ele até fosse o nosso Danny Zuko. Ou fosse bom em pintar como Ben. Um arrombador de portas como Carlos, um fã secreto da Cyndi Lauper ou um rebelde de coração mole, como Felipe. Eu me pergunto se ele ficaria legal com uma peruca.
Provavelmente não.
Mas, sabe, sentir falta dele é uma coisa boa. Conhecê-lo à distância é aquilo que chamam de uma oportunidade dourada. Nós podemos salvar Sérgio de todos os rótulos que escolheram para ele, Bernardo, e podemos fazer isso juntos.
Porque Sérgio Gomes vale a pena.
Porque ele é o nosso garoto de ouro.
『▪▪▪』
A torneira do banheiro masculino ainda está pingando repetidamente quando Carlos escora o corpo na pia de mármore e dá uma risada sem humor, tentando se livrar do nervosismo. Ele parece melancólico e um pouco estúpido com a peruca desgrenhada e a maquiagem meio borrada, mas isso não impede que meu cérebro fique martelando com aquela nova informação.
— Você provavelmente não se lembra. — É o que ele diz, coçando os fios castanhos da nuca. — Me desculpe... — Carlos ri e apoia as mãos na pedra de mármore, dando meia volta até poder olhar para o seu próprio reflexo no espelho. — Seu cérebro deve ter bloqueado isso.
Ele liga a torneira e deixa que a água se acumule em suas mãos grandes, unidas em concha. Carlos molha o rosto e desliza os dedos pela pele oleosa coberta de maquiagem, uma camada líquida de uma substância preta escorrendo abaixo dos olhos. Observo ele se livrar do rastro do rímel com alguns bons centímetros do rolo de papel higiênico, e depois puxo uma parte de sua saia que acidentalmente ficou presa na cueca. Ele está um caos.
— Você está horrível agora, Minduim. Preciso confessar... eu preferia quando você estava usando peruca e batom.
Ele olha sobre o ombro, agora diretamente para mim.
— É isso que realmente quer dizer? — ele pergunta, comprimindo os lábios. É difícil afirmar em voz alta que Miguel não existe, mesmo que ele suspeite que eu já saiba de toda a verdade.
Encolho os ombros, tentando disfarçar a minha euforia e curiosidade.
— Do que eu deveria me lembrar? — pergunto, cutucando suas costas, mas ele apenas balança a cabeça. Meu coração está batendo tão forte que posso senti-lo pulsando, latejando. Eu preciso de respostas. — Carlos, como você conhece o Miguel?
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Querido Bernardo
RomanceSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...