Vila Magnólia, São Paulo — 18.10.1989
Querido Bernardo,
Estou curioso sobre Poirot. E, agora, acho que entendo por que você gosta tanto desse gênero literário. Talvez você tenha imaginado que me faria roer as unhas. Mas é pior do que eu pensei que fosse. Cheguei a anotar o nome de todos os possíveis suspeitos desse caso, cada um com uma teoria diferente para ter assassinado o americano.
Amanhã, quem sabe, eu consiga lhe mostrar todas essas ideias malucas. E espero que saiba. Não vou perdoá-lo caso tenha lido o final sem mim.
Também pretendo contar sobre Sérgio, ou o que sei sobre ele. Há coisas que preciso dizer sobre aquele garoto de cabelos descoloridos que usava roupas rasgadas. Sobre o jovem que, apesar de morar tão perto, sempre me pareceu tão distante. E sobre essa distância que planejo quebrar, aos poucos, à medida que passo a conhecê-lo.
Mas... você é parte disso também, Bernardo. E quero que você esteja ao meu lado quando as coisas começarem a clarear.
Vamos conhecer Sérgio. Juntos.
『▪▪▪』
Estico meu braço para que Theo consiga alcançar a minha mão. Seus dedos pequeninos ainda estão melados pelo sorvete, mas eu não me importo, do mesmo jeito que ele não se importa com a minha roupa suja de graxa. É difícil acompanhar sua caminhada. Quando acho que finalmente estabelecemos um ritmo saudável, ele começa a andar em um ziguezague aleatório, balançando a mão que segura a minha.
A oficina já está fechada quando voltamos, mas sei que meu pai não está em casa. Ele nunca está.
Quem nos recebe na casa vizinha é a Sra. Gomes. Ela está apreensiva, apoiada na porta de entrada, os cabelos desgrenhados ainda com os bobes presos ao emaranhado de fios escuros. O vestido de estampa floral não é capaz de cobrir todas as marcas roxas em seus braços.
Theo corre até a mulher e se agarra à sua perna, as mãozinhas puxando acidentalmente o tecido de malha.
— Pelo amor de Deus, meu filho! — ela diz, preocupada, e sua voz está um tanto chorosa. — Onde é que você estava?
O garotinho se encolhe, provavelmente se sentindo culpado pela aflição da mãe. Ele não diz nada, apenas continua abraçado à perna da mulher. Sou eu que explico, numa voz baixa e temerosa:
— Eu prometi levá-lo para tomar sorvete.
Ela coloca a mão na cabeça do filho, que começa a soluçar, sem saber direito por que está chorando. As crianças parecem sentir quando algo está errado.
— Não acha que está pagando sorvetes demais? — ela pergunta. Sua expressão é tão séria que imediatamente desisto do plano de visitar o quarto de Sérgio.
— Talvez eu não precisasse levá-lo para tomar sorvete se a situação fosse outra.
A verdade, de certa forma, é libertadora. E eu não preciso sequer pensar duas vezes antes que as palavras escapem.
A senhora continua apoiada contra a porta fechada, acariciando os cabelos de Theo, que dá as últimas fungadas e seca os olhos úmidos no vestido colorido. Não fui a pessoa mais educada do mundo para tratar sobre aquele assunto, e temo que ela fique magoada. No entanto, quando meu olhar alcança seu rosto, vejo um pequeno sorriso de agradecimento.
— Obrigada, Caio — ela diz, meneando a cabeça e tocando a maçaneta. É a primeira vez que ela agradece, e isso me comove. — Obrigada por cuidar do meu filho.
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Querido Bernardo
RomanceSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...