Vila Magnólia, São Paulo — 25.10.1989
Querido Bernardo,
Carlos é um idiota. Não há dúvidas. De que outra forma eu poderia explicar um garoto de 1,85m que se comporta como uma criança? Ou, ainda pior, que tentou surrupiar meus quadrinhos do X-Men enquanto eu estava distraído?
Ele é o tipo de pessoa que não se importa em roubar um pacote de balas de ursinhos de gelatina no supermercado e devolver no dia seguinte. O grandalhão é completamente autêntico e cheio de energia, devo confessar. Ele sempre tem um sorriso de orelha a orelha no rosto, mesmo que algo o esteja incomodando. Quase sempre, ele é o responsável por ser o pilar que sustenta o bom humor do clube de teatro.
Charlie é nosso palhaço. E também o nosso arrombador de portas preferido.
Carlos não é bom em esconder seus sentimentos, e ele consegue ser quase insuportável quando está bêbado. Por isso, é normal que você se irrite com ele, e acabe amando-o ainda mais no final do dia.
Espero que, um dia, você possa conhecer todos eles. E veja o quanto cada um é precioso, à sua maneira.
Afinal, as portas do clube de teatro sempre estarão abertas para você.
『▪▪▪』
"Notícias ruins sempre chegam tarde da noite." É o que a minha mãe sempre diz.
Esta noite, em especial, quando o telefone toca, eu já estou vestido para dormir. Visto aquele habitual farrapo quadriculado que eu costumo chamar de pijama, o rosto meio enfiado nas páginas coloridas do terceiro volume de Watchmen. Para ser sincero, não estou nem minimamente interessado em ler, mas preciso de algo para me distrair dos pensamentos tão persistentes acerca de um certo baixinho viciado em romances policiais.
Já meio sonolento, acabo atendendo aquela ligação incomum, coçando os olhos cansados ao ouvir a voz de Carlos do outro lado da linha.
— Caio?
Seu tom é urgente, mais rouco e grave do que de costume.
— Espero que você tenha um ótimo motivo para me ligar a essa hora.
E, por um longo tempo, ele não diz nada. Carlos apenas responde com algumas fungadas esquisitas e uma voz anasalada, como se estivesse gripado. Ou, na pior das hipóteses, como se tivesse chorado muito.
— Caio... Você pode vir até aqui?
— Meio-fio? — acabo perguntando, quase derrubando o aparelho telefônico ao mesmo tempo em que, com apenas uma das mãos, tento vestir as meias.
A última coisa que escuto antes de desligar é um longo suspiro do grandalhão, que vem seguido de um chiado curto, quase como se ele tivesse soltado uma breve risada.
Antes de recolocar o objeto no gancho, consigo ouvi-lo concordando do outro lado.
— Meio-fio.
― ◆ ―
Há certa beleza na vizinhança decadente de Carlos. Mesmo com as construções antigas, algumas caindo aos pedaços, os muros de pedras regados de arbustos recém podados dão à ruazinha uma aparência simpática, eu diria, e até mesmo aconchegante. Aquele bairro situado num cantinho escondido de Vila Magnólia, apesar de muito humilde, é tão bem iluminado que faz com que eu me sinta em uma daquelas avenidas repletas de casarões.
Andando apressado na penumbra e carregando um pacote de balas de gelatina a tiracolo, sinto o ar faltar nos pulmões quando finalmente consigo ver o grandalhão sentado abaixo de um dos postes acesos, ganhando uma palidez quase dramática sob as luzes amareladas do bairro. Ele está lá, sentado no meio-fio, as pernas esparramadas no asfalto.

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Querido Bernardo
RomansaSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...