Capítulo 5

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Vila Magnólia, São Paulo — 19.10.1989

Querido Bernardo,

Você foi o primeiro para quem eu decidi escrever uma carta, então acho digno compartilhar algumas das minhas primeiras experiências. Afinal, você faz parte delas também.

A primeira vez que comi pastel com molho apimentado, por exemplo, cuspi tudo no uniforme de um colega do primário. Estávamos sentados juntos no intervalo entre as aulas e não pude deixar de provar quando ele me ofereceu. Fiquei mais feliz pela gentileza do que pela possibilidade de comer algo novo, mas o garoto não pareceu nada contente quando tingi sua camiseta com o molho picante misturado à minha saliva.

A primeira vez que dancei para uma platéia foi em 1985, em um pequeno evento numa praça perto de casa. Para falar a verdade, subi ao palco de modo clandestino e só não me arrancaram de lá a socos e pontapés porque, surpreendentemente, viram que eu conseguia acompanhar os passos da coreografia. No dia seguinte, deram-me um figurino apropriado e me chamaram para participar dos ensaios. Foi assim que entrei para o clube de teatro.

Ainda me lembro da primeira vez que segurei a mão de uma garota. Por coincidência, foi na mesma ocasião em que chamei alguém para sair pela primeira vez. As mãos da menina eram geladas e ela disse não. Ela olhou bem no fundo dos meus olhos e disse: "Me desculpe, Caio".

Quando beijei uma garota pela primeira vez, fiquei com a boca toda manchada de batom vermelho. E eu juro, Bernardo, que tinha prometido a mim mesmo nunca mais beijar ninguém. Mas então me lembrei de que nem toda menina usa maquiagem. Coincidentemente, essa é a primeira vez que conto a alguém sobre o meu primeiro beijo. Que ironia, não?

Nem a Babi sabe de todas essas coisas, e ela é a minha confidente. Fico feliz de compartilhá-las com você. Fico feliz que saiba um pouco mais sobre mim.

Foi com você que li o meu primeiro livro de romance policial, e também com quem fiquei no telefone por mais tempo. De certa forma, você roubou algumas das minhas primeiras experiências.

E eu sou muito grato por isso.

『▪▪▪』

A estação de trem está lotada.

Hoje é um desses dias em que o cadarço dos seus tênis insiste em desamarrar a cada dez minutos, ou um carro esporte decide que passar em alta velocidade na poça d'água perto de você é uma boa ideia. Como se não bastasse, há tantas pessoas esperando na plataforma que preciso esticar o pescoço para encontrar Bernardo na multidão. E não encontro, claro, porque o garoto é tão baixinho que a tarefa se torna quase impossível.

Não há espaço para me sentar, então fico encostado em um muro que fica atrás dos bancos já castigados pelo tempo. Basta um minuto de espera para que eu suba ali, mesmo sendo proibido, tudo para que eu possa encontrar um rapaz miúdo vindo da outra ponta da plataforma carregando numa espécie de abraço um pequeno livro com uma fita vermelha.

Fico tanto tempo perdido nos passos curtos e preguiçosos que, apenas nesses ínfimos segundos, sou capaz de decorar o seu caminhar. Não é como se eu já não tivesse feito isso, depois de observá-lo milhares de vezes. De longe, ele parece andar como uma criança.

Os olhos grandes parecem me procurar pela multidão e eu sorrio quase por instinto, acenando para ele. Não demora muito até que Bernardo repare no garoto alto sentado em cima do muro, ridiculamente vestido com um sobretudo antigo e uma lupa visível no bolso da camisa. A boina preta que descansa ao meu lado na estrutura de concreto faz de mim o melhor Sherlock Holmes que Vila Magnólia já viu.

Querido BernardoOnde histórias criam vida. Descubra agora