Vila Magnólia, São Paulo — 21.10.1989
Querido Bernardo,
Não leve a mal se, algum dia, você tiver o prazer — ou o desprazer — de conhecer Felipe Huang. Ele é um bom garoto, apesar de ter um vício nada saudável. Às vezes, tenho a impressão de que ele passa mais tempo fumando do que tentando ser amigável. Para ele, os cigarros são como os livros que você não consegue largar.
Felipe nasceu na China, numa cidade chamada Qingdao, cujo nome jamais conseguirei pronunciar corretamente. Sua família abandonou o país natal em busca de novas oportunidades. Quando era garoto, tudo que tinha para comer era inhame, por isso agora é um fã assumido dos fast-foods, mesmo que ainda não tenha dinheiro suficiente para se dar ao luxo de viver de hambúrgueres e batata frita.
Ele ganhou sua primeira televisão aos catorze anos. Desde então, tem se interessado por filmes americanos, o que acabou por incentivá-lo a participar do clube de teatro. Sou sincero quando digo que o garoto não tem dom para interpretar personagens de caráter forte, como aqueles sujeitos malandros metidos a James Dean. Apesar de exalar um ar rebelde, Huang se sai melhor usando uma peruca do que vestindo uma jaqueta de couro. Dar vida à mulheres de meia idade é um dos seus talentos ocultos.
Você talvez o ache indiferente, à primeira vista, mas garanto que Felipe é uma das pessoas mais surpreendentemente doces que já conheci. Só não conte isso a ele, certo?
Será o nosso segredo.
『▪▪▪』
Meu esconderijo fica a uma caminhada razoável da estação fantasma por onde o trem não passa mais e onde a vegetação cresce, tímida, se embrenhando entre os trilhos da via férrea. Quando mudamos nossa rota, seguindo para o grande espaço a céu aberto, Bernardo já não está segurando a minha mão. Ele parece ter desistido de perguntar para onde estamos indo. E, agora, anda ao meu lado em silêncio.
Perto de um muro pichado de infinitas cores e batizado com milhares de nomes, a grande estrutura solitária se ergue de forma imponente. É um vagão abandonado, mas, visto de perto, é praticamente um porto seguro. Na árvore do lado direito, algumas iniciais e nomes foram entalhados por casais esperançosos, acreditando na possibilidade de um amor eterno.
O garoto fica agachado enquanto passa os dedos sobre um dos nomes, os lábios se curvando em um sorriso enquanto ele sente a textura entre as iniciais talhadas na superfície. Ele repete o mesmo processo nos outros, parecendo encantado com as marcas deixadas pelos jovens apaixonados.
No entanto, o que realmente o surpreende é o interior daquele vagão acobreado. Há travesseiros e um colchão velho, um pequeno rádio sem pilhas e um jogo de tabuleiro. Todas coisas que mantenho guardadas ali.
Aponto para o vagão e me aproximo, subindo para me sentar do jeito mais relaxado possível.
— Bem vindo ao nosso covil secreto.
Bernardo coloca o livro sobre as minhas coxas, usando as mãos para içar o corpo e se largar encostado a algumas almofadas. Ele se livra da mochila e suspira, cansado.
— Você fala como se fossemos vilões.
— Então... um clube de leitura. Ou um quartel general — sugiro, inclinando minha cabeça em sua direção. — Esse lugar pode ser o que a gente quiser.
Ele começa a procurar alguma coisa em sua mochila. Ouço um ruído conhecido, imediatamente vendo-o tirar dali uma sacola plástica com pelo menos dez edições do jornal local. Todos da semana em que Sérgio morreu.

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Querido Bernardo
RomanceSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...