Vila Magnólia, São Paulo — 22.10.1989
Querido Bernardo,
Acredito que você vai adorar conhecer Henrique. Ele é o tipo de garoto que aparenta ser. Sua alma é a de uma avó sempre disposta a cuidar muito bem de seus netos. E, bom... Digamos que as roupas também. Os suéteres e os cabelos com corte de tigelinha dão-lhe a aparência de um adolescente tímido.
De fato, Henrique era muito retraído quando chegou ao clube. Ele resolveu se inscrever após ver nossa apresentação de Dançando na Chuva, num festival de cultura organizado pela prefeitura da cidade. Isso faz dele nosso membro mais recente.
Há ainda muitas coisas que não sei sobre ele. O garoto nunca fala sobre sua família ou sobre sua vida pessoal. Henrique Bittencourt, em muitos aspectos, ainda é um mistério.
Ele começou ajudando Ben a criar os cenários das peças, até se arriscando na pintura algumas vezes, e logo evoluiu para ser "o cara que levanta e abaixa as cortinas". Ele é incrivelmente bom nisso. E também tem um talento invejável em qualquer jogo de cartas. Henrique só não consegue ganhar de Felipe no pôquer.
Por isso, não pense duas vezes antes de conversar com ele. Ele é um bom ouvinte, e até dá uns conselhos bacanas de vez em quando. Mas, que fique bem claro: é preciso paciência para evitar que ele passe vergonha nos lugares, estando bêbado ou não.
Henrique é um amigo precioso. Cuide bem dele, ok?
『▪▪▪』
Conheci Theo numa noite de inverno. Eu tinha catorze anos na época, quase beirando os quinze, e costumava usar os cabelos mais compridos do que são hoje. Naquele sábado, tudo que um garoto da minha idade queria era ficar sozinho, largado no chão do quarto para jogar seu videogame novo. Eu não estava preparado para lidar com uma criança assustada.
Quando a campainha tocou, minha mãe recebeu a senhora Gomes, nossa vizinha, e sequer teve tempo de oferecer-lhe um copo de água. É claro que tínhamos ouvido os gritos. O ranger dos móveis, os tapas e os xingamentos proferidos naquela voz rouca e arrastada. Foi por isso que decidi descer as escadas, já de pijama, espreitando a visita inesperada. A contragosto, aceitamos abrigar o pequeno garotinho por uma única noite, sem saber se devíamos chamar a polícia ou não.
Assim que os gritos recomeçaram, meu pai discou o número da emergência.
— Leve-o para o seu quarto — minha mãe pediu colocando as mãozinhas de Theo entre as minhas. — Vou fazer algo para o garoto comer.
Mas... eu estou jogando videogame, quis dizer a fim de tentar escapar daquela responsabilidade. Um rapaz de catorze anos não quer ser babá de uma criança. Eu naquela idade, só pensava em passar para o próximo nível no meu jogo favorito.
Contrariando minhas vontades pela primeira vez, eu apenas balancei a cabeça e puxei o garotinho para o meu colo. Não era uma situação em que eu pudesse simplesmente dizer não.
Theo não chorou enquanto eu subia as escadas, nem mesmo quando eu o coloquei sentado em minha cama e desliguei o videogame. Ficamos ali, ambos de pernas cruzadas sobre o colchão encarando um ao outro por um longo tempo. Eu não fazia ideia do que deveria fazer com ele. Como supostamente uma criança deveria cuidar de outra criança?
— Você... gosta de ver desenho animado? — perguntei incerto e o pequenino apenas franziu a testa demonstrando confusão. — E de música? Desenhar, talvez?
Ele não respondeu é claro, e começamos uma brincadeira silenciosa de quem conseguia manter a cara emburrada por mais tempo.
Bem, nós dois ganhamos.
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Querido Bernardo
عاطفيةSão poucas as pessoas que tiveram a oportunidade de vivenciar um grande amor, e menos ainda as que tiveram a chance de compartilhá-lo. Nas cartas amareladas e em sua máquina de escrever, Caio conta sobre o herói, e também sobre o clube de teatro. Co...