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Bella

Acordo muito cedo, o que é estranho.
O sol nasceu e toca o mar, como sempre.
Desperto e saio do quarto do Shawn, indo para o meu. Nem sei se ainda posso chamar esse quarto de meu. Não durmo aqui desde que soube da... morte dele.

A ideia de que ele não vai mais voltar desce seca e dolorosa pela minha garganta. Meu corpo e meu coração se recusam a acreditar que isso aconteceu.

Abro o armário, depois de fazer minhas higienes diárias. Prendo o cabelo num rabo de cavalo alto e procuro por roupas pretas. Pro meu azar, não tenho muitas roupas pretas.

Quando Shawn me trouxe, ele comprou roupas leves e coloridas pra eu usar aqui, me adaptando ao clima quente e ameno do lugar. Agora, sinto falta do preto como sinto a falta dele.

Duas coisas que foram tiradas de mim.
Alguém bate na porta e eu digo para entrar, ainda procurando algo escuro pelas roupas.

"Oi, bom dia."
É Aaliyah. Seu tom é triste e ela abre um sorriso curto. Pela falta de brilho nos olhos dela, imagino que o gesto de sorrir está lhe causando uma dor profunda.

Eu a abraço, acolhendo confortavelmente seu corpo curvado de tristeza nos meus braços desajeitados.
Nunca fui muito boa com ocasiões assim.

Nunca gostei desse clima, tanto que insisti para a funerária enterrar minha mãe sem um velório ou cerimônia. Não ia conseguir me recompor depois. Preferi manter a foto dela sempre comigo, lembrando da pessoa incrível que ela era. Nunca fui muito boa lidando com a dor.

O meu gesto parece certo, porque eu sinto ela descansar em mim. Deixo que compartilhe um pouco da sua tristeza comigo.
E, quando se sente melhor, se afasta gentilmente.

"Trouxe algo pra você. Lembrei de só ver você com roupas claras, imaginei que faltariam pretas."

"Ah, você é um anjo, Aaliyah. Obrigada."
Pego o vestido das suas mãos.
Ela continua ali e eu a observo, sem saber o que fazer ou dizer.

Ela cortou o cabelo ontem, na altura dos ombros. Talvez seja um jeito de gastar sua dor. Seu rosto está pálido e ela está se esforçando para ficar bem.
"Se precisar, me chame."

Assinto e agradeço.
Ela se retira e eu me troco.
O vestido é simples e vai até o joelho.
Desço as escadas e o clima é pesado.

Soldados caminham pela casa mas estão cabisbaixos e silenciosos. Me cumprimentam com um aceno de cabeça.

Dona Karen olhava pela janela, observando a praia.
Está totalmente apática. Até a cor dos seus cabelos sempre num tom entre dourado e castanho claro, sumiu. Está cinzento e sem vida, exatamente como ela deve se sentir por dentro.

Então eu me desligo, me esquivando da dor.
Aceito abraços e cumprimentos, aceito ser ombro pra lágrimas e aceito regar as pessoas com palavras tranquilas. É a única forma que conheço de lidar com a dor.

Um vez, imaginamos, deitados na sombra da árvore, como seria o nosso velório, na nossa cabeça. Estranho, eu sei, mas não tínhamos problema com assunto.
Um dia, decidimos criar sabor de pizza.

"Como você gostaria de se enterrada?"
Shawn pergunta, brincando com a palma da minha mão.

"Acho que eu não iria querer uma cerimônia. Não faria diferença."
Ele finge estar chocado.

"Claro que faria, Bella. As pessoas aqui te amam."
Eu sorrio.

"Você se inclui nisso?"
Ele finge pensar e sorri, roubando um beijo rápido.

"Claro que sim. Na verdade, eu sou o primeiro da fila de pessoas que te amam."
Eu rio.

"Como seria o seu?"
Eu pergunto. Não estava pronta pra dizer o mesmo. Não queria dizer que o amo sem convicção, sem sentir no fundo da alma que é verdade.

Ele se apoia nos cotovelo e eu me sento, cruzando as pernas, enquanto devoro uma maçã verde que ele tinha trazido pra mim.
"Acho que eu não ia querer ninguém de preto ou chorando. Ia querer cores e músicas. E muita vodca."

Ele dá uma sorriso grande e perfeito.
Me agarra e me enche de beijos depois.

Paro.
Shawn não ia querer aquilo.
Vou até Karen, antes que a cerimônia começasse e conto pra ela desse dia e o que ele disse.

Ela sorri, fungando de chorar e põe a mão no meu ombro.
"Claro que Shawn disse isso."- Ela se vira para um dos soldados que passavam por ali e o chama.-" Avise à todos que substituam as roupas pretas por coloridas e que toquem música alegre. E separem a vodca!"

Ela diz.
O soldado assente e se retira.
Ela me abraça.
"Obrigada, querida. Nem sei o que pensar ou fazer hoje. Obrigada por me direcionar. É claro que ele não iria querer lágrimas.

Subo as escadas, sentindo o coração mais leve e coloco um vestido azul, o preferido do Shawn.
Solto o cabelo, deixando ele cair em cascatas nas costas e saio, mais animada.

Se é festa que vai marcar esse dia, que seja.
Meu coração doi, de saudade dele. Se estivesse ali, provavelmente diria algo safado pra mim e piscaria, me puxando pra festa. Shawn não perdia a oportunidade de estar em uma. Foi assim que nos conhecemos e é assim que vou me despedir dele.

No final da cerimônia, sobrou só a lápide e as flores esparramadas sobre onde o caixão vazio foi enterrado.

Me sentei ao lado, um pouco bêbada.
"Não acredito que você me deixou, Mendes. Você é um babaca que esqueceu das promessas que fez pra mim."

Eu o acuso. Paro e, segundos depois, começo a chorar.
"Ah, eu sinto tanto a sua falta, idiota... Queria tanto você aqui, comigo."

Acaricio sua foto no túmulo e olho para a praia. Que visão maravilhosa.
Então eu soube que, onde quer que estivesse, ele ficaria bem. Eu sentia isso e torcia por isso. Assim como torcia para a dor que existia em mim pela falta dele, acabasse.

Deixar ele ir é a coisa mais difícil do mundo e eu nunca vou me curar disso.
Mas cicatrizes são importantes para lembrar de quem amamos e pelo o quê brigamos.

Liar ~ Shawn MendesOnde histórias criam vida. Descubra agora