Memórias

8.4K 1K 640
                                    

Apesar do sol brilhando entre as nuvens, o vento frio me fazia tremer enquanto tentava acompanhar meus colegas pelas ruas da cidade que já começavam a se tornar conhecidas para mim.

Minhas roupas molhadas não exatamente ajudavam a me manter quentinha no dia bastante fresco.

Se eu estivesse seca, com certeza acharia o clima perfeito, nem quente e nem frio demais. Porém, encharcada até o osso como eu estava, eu tremia igual vara verde dentro da camisa xadrez emprestada de Johnny.

Um arrepio gelado que nada tinha a ver com o clima eriçou os meus pelos ao mesmo tempo em que meu estômago revirava quando, pelo canto do olho, captei uma visão que fez o meu coração parar.

Girei no mesmo lugar e cravei o olhar em um homem mais velho usando uma camiseta de mangas longas, no entanto, logo soltei o ar. Não é ele, pensei levando a mão ao coração. Não é ele. Achei que eu pudesse chorar de alívio com essa constatação simples.

Esfreguei as mãos pelos braços buscando gerar algum calor enquanto o morador de rua me encarava como se eu fosse louca, o que eu também acharia que eu era se estivesse no lugar dele. Ele continuou o seu caminho, empurrando o seu carrinho de recicláveis me olhando muito desconfiado.

Já fazia anos que eu não tinha notícias daquele homem, no entanto, qualquer coisa que o lembrasse — o jeito de se vestir, os cabelos prateados embaraçados, o cheiro de álcool — me fazia tremer. Como sempre, enviei esse pensamento para longe.

Esquecer o passado e não pensar demais no futuro, era assim que eu vivia. Se eu pensasse demais, não conseguiria fazer o que era necessário para seguir em frente.

Levei a mão ao ombro, à cicatriz que eu tinha ali da última vez que vi aquela cara miserável na minha frente e senti o sangue fugir do meu rosto. Eu era um maldito rato, sempre fugindo e fungindo, com medo de que ele achasse a mim ou a minha mãe.

Merda, pensei quando lágrimas começaram a escorrer pelos meus olhos e respirei fundo. Eu não podia pensar naquelas coisas todas. Eu precisava ser feita de luz, como a minha mãe vivia repetindo para mim nos poucos momentos de sanidade que tinha na casa de repouso. Se eu deixasse as sombras me tocarem, elas iriam me enlouquecer como enlouqueceram mamãe.

Tremi outra vez com esse pensamento.

— Tudo bem aí, bichinho? — uma menina loura perguntou ao meu lado, preocupada. Ela estava seca e corada, dentro de um vestido cor de rosa perfeito para o clima fresco. — Precisa de uma pausa? Água, suco, chocolate?

Seus cabelos loiros e volumosos estavam  semi presos em duas maria-chiquinhas e o resto do cabelo caia solto, emoldurando o rosto oval e delicado de boneca.

— Manda ela catar dinheiro, Barbie — berrou outro veterano, o de dreadlocks. Ele tinha tirado a camiseta e estava exibindo os gomos bem definidos da sua barriga enquanto bebia vinho barato com um grupo dos seus colegas sob uma árvore, rindo e apontando para os calouros correndo como baratas tontas atrás de dinheiro e cumprir ordens imbecis para entreeter os veteranos.

Meu sangue ferveu com aquilo. Bando de babacas.

— Vai se foder, JP — ela berrou de volta e mostrou o dedo com a unha feita no estilo francesinha para ele. O veterano só riu dessa atitude, como se ela fosse um bichinho engraçado. — Babaca — sussurrou para si mesma.

Ela voltou o olhar preocupado na minha direção e levou a mão até a minha testa, medindo a temperatura. Sua palma parecia muito quente em contraste com a minha pele fria.

— Tudo bem — respondi forçando um sorriso e ela assentiu, mas suas sobrancelhas estavam contraídas e tive minhas dúvidas de que ela acreditava em mim. — Foi só um mal-estar passageiro, já estou pronta para a próxima.

Rosas Azuis [CONCLUÍDA]Onde histórias criam vida. Descubra agora