As paredes, cuja cor-de-ouro ia do chão até o teto, ocupavam tantos metros de altura que era difícil olhar para cima, ainda que a visão fosse inegavelmente encantadora. Pinturas de anjos, leões e uma representação europeia de Deus enfeitavam todo o salão, adornadas por nuvens, flores envelhecidas e cores sóbrias e claras. A aristocracia esbanjava roupas luxuosas nas cores cinza e amarelo, uma euforia desmedida derramada em cada sílaba que saía dos lábios artificialmente avermelhados das damas e das risadas altas dos cavalheiros. A família real ousava em vermelho e azul petróleo, como sempre deslumbrantes demais se comparados a qualquer plebeu, mesmo os da burguesia.
Com exceção dos escravos, pessoas de todos os estamentos estavam presentes. Radiantes, as pobres moças camponesas tentavam em vão atrair algum olhar do herdeiro Uzumaki ou de algum dos herdeiros Uchiha. "Em vão" porque aquele baile era pura e simplesmente uma grande demagogia. Ofereciam aos plebeus uma chance imaginária de ascenderem em suas vidas através de um baile aonde conheceriam os herdeiros e, se chamassem a atenção de algum deles, poderiam se casar, o que garantiria até mesmo a um simples camponês um título de nobreza e uma vida luxuosa no palácio.
No fim das contas, no entanto, eles alegariam que o amor "surgira debaixo de seu próprio teto", e aquela Uchiha esguia e sorridente se casaria com o imponente Uzumaki de sorriso afiado e olhos vermelhos. Sasuke costumava se perguntar quantos tipos diferentes de incesto poderiam ter acontecido durante milhares de anos para conseguir manter aquelas mesmas famílias no poder. As princesas em breve se casariam com os príncipes e virariam simples coelhos, tendo filhos aos montes para que os primos permanecessem casando-se entre si e perpetuando um poder inalcançado pelos vinte milhões de camponeses, seis milhões de soldados e algumas centenas de burgueses.
O jovem camponês caminhou encolhido e de cabeça baixa pelos corredores, gostando das pinturas nas paredes, mas irritado com a forma como a coroa gastava o dinheiro da população. Já tinha comido e bebido mais do que em toda a sua vida, aproveitando a oportunidade única. Se pudesse, levaria também para seu pai, mas sabia que não era permitido.
Sasuke até poderia se camuflar entre os nobres e os burgueses, com seus traços delicados, pele clara e olhos e cabelos pretos, não fossem as roupas sóbrias e simples de camponês.
As filhas dos burgueses e dos nobres caminhavam de mãos dadas, papeavam com as princesas e flertavam desmedidamente com os príncipes, todas esperando sua própria chance de ter um título e o prestígio da realeza. Sasuke nunca entendeu a obsessão pela nobreza. Pessoas que já tinham dinheiro, pelo título, estavam dispostas a dar sua liberdade em troca, enquanto os camponeses ralavam dezesseis horas por dia para que ao fim do trimestre entregassem a parte da coroa e pudessem se alimentar todos os dias.
Muitos tinham mais filhos do que poderiam sustentar, porque filhos são mão de obra. Era tudo tão triste no meio da cidade e no campo. A gritaria, a desnutrição, as mortes e todo aquele discurso hipócrita sobre o melhor reino do mundo, onde os nobres e os soldados comiam a maior parte do que os mais pobres produziam com tanto suor e esforço. A raiva que Sasuke tinha só crescia vendo aquelas roupas cheias de pedras caríssimas e raras, aqueles lustres pendurados teto abaixo, as mesas apinhadas de comida, vinhos importados dos lugares mais longínquos.
Encarou um móvel comprido de madeira encostado na parede com objetos de ouro e cristal enfeitando. Na parede desse mesmo móvel estava pendurado um espelho enorme e retangular com a moldura toda retorcida, feita de ouro com leões esculpidos delicadamente. Aproximou-se encarando o próprio reflexo. Apesar da comida escassa, era forte graças ao trabalho diário. Tinha olhos fundos, olheiras marcadas e a expressão era de cansaço e raiva.
No entanto, enquanto se olhava, perdeu-se em uma visão mais adiante. Usava roupas velhas de camponês, mas parecia muito mais lindo que qualquer príncipe. Era alto e forte como Sasuke, tinha a pele bronzeada, cabelos loiros e os olhos azuis da cor do oceano e do céu. Sasuke não tirava os olhos dele, e ele não tirava os olhos de Sasuke.
Um arrepio percorreu ambos os corpos e lágrimas desceram de seus olhos. Era uma sensação bizarra, macabra, que nenhum dos dois jamais esqueceria. Sasuke não tinha coragem de tirar os olhos do espelho. Tinha medo de que se olhasse diretamente naqueles olhos, sucumbiria àquela sensação aterradora. E desconfiava que o estranho se sentia da mesma forma.
Depois daquele baile, os dois passariam dezenas de noites sonhando com um reencontro.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O espelho, a espada e o escudo | SNS
Fiksi PenggemarDois camponeses do penúltimo estamento, duas famílias na realeza onde primos casam entre si, o reino passa fome e ninguém toma o poder há milhares de anos. Um cântico antigo que diz que quando o Sol e a Lua se encontrarem, cada pedaço de terra que e...