Capítulo 3: O Novato 🦋

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Não foi bem como aconteceu, mas também nem tudo foi ruim. O que restou do período de férias se resumiu em dias e dias de resgate, de tentativa de encontrar o que não estava perdido. Conforme o tempo passava, mais os fatos e as memórias voltavam a se alinhar, trazendo a Fernando uma familiaridade tranquilizante sobre tudo que acontecia ao redor. Valério era seu pai—Dr. Valério Ávila, juiz: um homem rígido, de poucas palavras, mas de coração grande. Era mais próximo de Laura; parecia ter menos intimidade com o filho, que era, sem dúvidas, o cristal precioso da mãe, e era com quem ela passava a maior parte do tempo quando estavam todos em casa. Com ela, tudo era mais natural e suave. Sua voz mansa, seu toque delicado, seu cuidado e carinho maternos traziam uma paz tão completa que dava vontade de morrer nos braços dela da maneira mais poética e não-trágica possível. Havia algo de intimidador no pai, fosse o olhar, a imposição física, a profissão que lhe exigia certo sangue frio... Fernando não tinha medo, mas também não se sentia convidado a se aproximar dele, embora não o amasse menos por isso. Sentia que queria ser perdoado por um crime que não se lembrava de ter cometido, e sentia que o olhar vago e o sorriso enigmático de Valério eram seu imerecido castigo.

Fernando levou alguns dias para se conscientizar de seu grande segredo, e essa consciência representava mais um fio que se ligava à teia de mistérios: sua sexualidade. Ele sabia que era gay, mas não calculava quantas pessoas sabiam disso, pois, depois de despertar daquele sonho, teve também a sensação de que era óbvio demais, de que todos já sabiam, mesmo ele nunca tendo contado. Ou será que contou? A quem ele tinha revelado seu segredo além de Rafaela e Marina? Será que Laura sabia? Não, a irmã não, nem a mãe e muito menos o pai, disso ele teve certeza sem precisar queimar nenhum neurônio. O que o intrigava, no entanto, era a ideia de que, ao mesmo tempo, tanto não havia mais por que esconder isso, quanto era preciso guardar o fato a sete chaves, pelo menos por enquanto, pelo menos em algumas situações, com algumas pessoas.

Passadas uma ou duas semanas convivendo com aquela instabilidade existencial, a poeira assentou. Nunca um sonho abalou tanto quanto aquele, mas logo, logo a paranoia cessou. As lembranças reais se distinguiram das imaginárias com mais clareza: as pessoas da vida real eram exatamente as pessoas da vida real—os membros da família, de quem Fernando sabia nome, sobrenome e importância—; os colegas do colégio eram os colegas do colégio; o Santa Luz para onde ele voltaria em breve estaria exatamente onde sempre esteva e só, e nada mais. Não havia mais motivo para continuar com as interrogações e aflições bobas. Ele não estava mais dormindo, ele não teve outros pesadelos parecidos, os déjà vus eram nada mais que invenções de sua mente, as falsas memórias eram nada mais que fabricações do seu inconsciente. A única coisa que persistia e desafiava explicações eram os sentimentos ligados a eventos que ainda poderiam ou não acontecer. O sentimento de perda da mãe, o receio do pai, a confiança na irmã, a segurança de ser gay... Aquilo tinha que significar alguma coisa, de um jeito ou de outro.

Sem saber ao certo como definir sua relação com esse outro-eu imaginário que habitava algum quarto subterrâneo, trancado nas profundezas de sua psique, Fernando decidiu que essas impressões, visões, esses insights eram meras manifestações do que ele passou a chamar—com o humor necessário para amenizar o espanto que o fenômeno causava—de um sétimo sentido, e acreditou piamente que todo mundo devia ter um igual, mas ninguém falava sobre por medo de parecer idiota ou infantil. E, confortado por essas convicções, ele finalmente teve paz outra vez.

Havia uma empolgação fora do comum em Fernando para começar o segundo colegial. Ele não era exatamente o tipo de garoto que esperava ansiosamente pelo início de um novo ano, em especial porque ele já fazia ampla ideia de quem seriam as pessoas presentes no colégio, então não era como se fossem surgir novidades que justificassem o entusiasmo. Mas havia algo em seu coração que dizia que aquele ano seria diferente.

De Volta ao Santa Luz (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora