XIX

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A chuva caia e eu não estava mais grato por isso. Me sentia pesado, possivelmente lento. E melancólico, tão melancólico que pensava seriamente em não me mexer e deixar que Matthew estourasse meus miolos. Não que ele parecesse tão bem quanto antes. Na verdade, ele estava péssimo. Um pouco de sangue escorria do cabelo pela têmpora e seu rosto estava cada vez mais arroxeado devido ao soco de Yelena. Mas o que me incomodava nele eram seus olhos febris e desvairados. Eram os olhos de quem mataria sem pensar.

- Largue a arma Yelena! - ele gritou. - Largue agora!

Talvez ela tenha sentido o que eu senti, ou tenha visto a besta enjaulada prestes a saltar dos olhos dele. Ela soltou a arma no chão e levantou as mãos, tudo bem lentamente. Eu estava congelado, sem saber como me mexer. O aço da arma nas minhas costas parecia cada vez mais gelado.

- Você sabe o que causou? - ele perguntou, a voz trêmula. - Você arruinou sua chance de viver, e a do seu namorado também.

Ele tremia, e a arma balançava. Não era mais o homem confiante que invadiu a Academia, nem o comandante autoritário que negociou comigo no subsolo. Aquele homem parecia ter perdido tudo, até sua sanidade. Eu respeitava suas outras facetas, mas essa na minha frente, eu temia.

- Matthew... - ela começou, baixinho, sem querer assustá-lo.

- Cale a boca! - ele gritou, a voz trêmula. - Você tinha que estar aqui, não é? Você tinha! Não importa onde eu vá, você está lá! Você mata meus alvos, captura quem eu queria... Mas dessa vez você se superou! Resolveu proteger uma escola inteira! Logo você, protegendo! E justo quem? Um rapaz que sequer sabe sua vida, quem você é.

- Deixe-me explicar...

- Não tem o que falar. - Matthew deu alguns passos na nossa direção. – Você tinha que se meter...

A arma tremeu na mão dele e eu prendi a respiração. Nem mesmo eu erraria um tiro daquela distância. Eu olhei para Yelena, mas seus olhos não desviavam de Matthew, como se soubesse que ao menor vacilo, ele atiraria.

- Sabe o que sua interferência nos custou? - ele deu uma gargalhada. - A vida. Sim, a vida! Hoffmann desistiu de tudo, não quer mais saber. E você o conhece, sabe muito bem o que ele faz com quem considera dispensável.

O maxilar dela trincou. Vi as chamas em seus olhos tremeluzirem como nunca. Aquela russa era fogo puro.

- Você também? - perguntou.

- Ele vai me matar por sua causa! - ele gritou outra vez. A cada segundo, o nível de insanidade dele aumentava. - Mas eu não vou morrer sozinho... Não vou mesmo...

- Matthew! Me escute! - ela rosnou. - Você sabe que podemos sair os dois daqui e nunca mais sermos encontrados, não sabe? Somos os melhores nisso, juntos podemos sobreviver!

Espere, eu dormi, ou ela propôs uma fuga juntos?

- Você não entende! - ele tremia inteiro, o gatilho da arma que apontava para a cabeça dela foi empurrado um pouquinho. - Ele é Hoffmann, ele consegue tudo o que quer! Ele não vai parar enquanto não souber que morremos.

- Eu sei, mas pense, podemos caçá-los! Juntos! - a voz dela era animada, como se estivesse propondo pedir uma pizza. - Quando ele perceber o que está acontecendo, já estará morto!

Matthew balançou a cabeça e fechou os olhos dois segundos. Eu pensei que ela fosse correr e desarmá-lo, mas ela não se mexeu. Por que ela não se mexia?

Eu caí na besteira de dar um passo para o lado, pisando numa poça d'água. Na mesma hora os olhos de Matthew se abriram e se fixaram em mim. O gatilho da minha arma foi um tiquinho mais pra trás.

- Hey... - Yelena chamou, doce. - Vamos fugir... Você sabe que nossas chances são boas.

Enquanto ela falava com ele, o gatilho da minha arma afrouxou. Foi somente então que percebi que ela estava ganhando tempo. Se ela pudesse desarmá-lo, ou então distraí-lo, eu poderia usar a arma que estava nas minhas costas.

- Você sabe demais, ele jamais perdoará isso. - então ele voltou a olhar para mim. - Tudo por sua causa.

Eu vi, como se estivesse em câmera lenta, o dedo dele começar a puxar o gatilho. Pensei que fosse morrer ali, mas não deveria duvidar de Yelena. Ela correu até ele em dois passos largos e acertou seus braços, fazendo com que ele tivesse que me ignorar e passasse a lutar com ela. Ele puxou o gatilho, mas ela desviava das armas. Estava tão chocado, que por alguns segundos esqueci que estava armado.

Mas a dança não poderia durar para sempre, e por fim, vi a mancha escura se formando no uniforme de Yelena.

Eu despertei do sono em que estava quando a vi ajoelhada, com as costelas vermelhas. Ela estava morrendo, porque eu tinha sido um idiota. Mais uma vez um idiota, deixando que ela resolvesse tudo, cuidasse de tudo. Ela tinha precisado de mim, e eu tinha sido incapaz, mais uma vez.

Mas eu não pensei em nada naquele momento, nas consequências do que estava fazendo, meu instinto apenas me guiou a puxar a arma das costas e atirar.

Alexei teria se orgulhado.

Meu tiro acertou o peito de Matthew, próximo o bastante do coração para que não houvesse cura. Ele me olhou surpreso, como se não esperasse morrer por causa de um moleque, e tombou. Eu vi, meio fascinado, a poça de sangue se misturando com a chuva que caia.

Eu corri até Yelena quando percebi que Matthew estava morto, e coloquei a mão sobre o tiro, tentando estancar o sangramento.

- Vai ficar tudo bem. - eu falei, talvez mais para mim do que para ela. - Acabou.

Ela sorriu, trêmula.

- Eu ouço helicópteros.

E era verdade. Eu podia ver os helicópteros vindo. Deveria ser o socorro, e eu quase rezei agradecendo.

- Eles vão cuidar de você. - eu falei. - Você vai ficar bem, eles vão acabar com isso.

- Fred... - ela colocou a mão no meu rosto e soluçou. - Obrigada.

Meus olhos estavam se enchendo de lágrimas, mas eu jamais admitiria isso. Era apenas a chuva escorrendo.

Como a maioria das coisas da minha vida, eu apenas faço por impulso, e essa foi apenas mais uma delas.

Eu segurei a mão dela e beijei a palma, sorrindo. Logo nossos olhos se cruzaram e ficamos imersos naquela situação, um tentando passar ao outro o que estava sentindo. Foi a conversa muda mais eloquente que já tive.

Sem pensar, eu me debrucei e capturei os lábios dela nos meus. Chuva, suor, medo, sangue, tudo estava misturado naquele beijo. Nossas línguas nem mesmo chegaram a se tocar, e para mim já era o bastante.

Cedo demais ela se afastou levemente, e eu logo me recompus, mantendo uma distância segura, apenas com a mão que tentava parar o sangramento nela.

- Desculpe. - falei.

- Tudo bem. - ela disse. - Acontece.

Eu não respondi. Agora que estava acabado, ela iria embora, para sempre. E foi isso que aconteceu.

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