O sol batia na minha nuca naquele dia, e o vento fresco ajudava a amenizar o desconforto. Quem olhasse, diria que eu era apenas mais um enlutado em um cemitério. Quem me conhecesse saberia que era mais do que isso.
Um ano.
Fazia um ano que aquele dia maldito aconteceu. Um ano desde o momento que eu descobri quem eram meus amigos, que aprendera a negociar com a vida, descobrira como me virar em tiroteios. Naquele dia, fazia um ano que meu melhor amigo morreu.
As letras na lápide diziam, em russo "um bom amigo até o fim", junto com sua data de nascimento e morte. Alexei Nikolaevich tinha 26 anos quando morreu, apesar de seu rosto parecer tão jovem quanto o meu. Ele sabia álgebra e atirar com uma sniper. Era um agente secreto, mas gostava de mangás e RPGs. Ele tinha uma vida.
Tinha...
A palavra ficou ribombando na minha cabeça enquanto eu olhava aquele túmulo.
Depois que os helicópteros chegaram naquele dia, Yelena foi prontamente socorrida. A última vez que a vi, estava entubada e desacordada, trancada em um helicóptero e a caminho de um hospital. Eu não pude sequer dizer adeus ou obrigado. Ou eu te amo.
Como eu era o único que sabia de tudo que tinha acontecido, contei em detalhes toda a ação, desde as primeiras janelas quebradas até aquele momento. Eles trouxeram o corpo de Alexei para o telhado, e eu fiquei paralisado, fitando o rosto do meu amigo por um bom tempo.
Yelena partira para nunca mais aparecer, meu amigo estava morto, e eu tinha um longo interrogatório a dar sobre Hoffmann, meu pai e o sequestro. Aliás, não, meu pai não moveu um dedo sequer com a minha ligação. Ele confiou na melhor assassina de aluguel do mundo para me proteger. Eu acabei descobrindo que ele fora o contratante misterioso que colocou-a na minha escola. Aquela história de Agência de Inteligência fora pura mentira, ela era minha guarda-costas.
E ela cumprira sua missão, no final.
O que me matava era não saber quem ela era de verdade, seu sobrenome, ou até primeiro nome, do que gostava, onde morava. Eu queria vê-la, até para convencer a mim mesmo que a paixão fora ocasionada pela adrenalina. Eu precisava disso para não enlouquecer. Eu nem sabia se tinha sobrevivido ao ferimento, apesar que eu não gostava de pensar que estivesse morta.
Ninguém nunca me disse nada sobre ela. Talvez tivesse sido capturada, e agora estivesse numa prisão qualquer sendo condenada por seus crimes. Ou talvez estivesse em Veneza, namorando algum cara numa gôndola. Tanto fazia. Eu sabia onde eu estava, num cemitério russo, numa vila onde ninguém sabia falar outro idioma. Aparentemente, Alexei nascera ali.
Uma das minhas exigências para colaborar com a polícia e o serviço secreto fora acompanhar o enterro do meu amigo, e saber a localização do túmulo. Queria que ele soubesse, onde quer que estivesse, que eu reconhecia sua morte como culpa minha. Queria que ele visse que eu não tinha me esquecido, que eu rezaria e agradeceria para sempre ele ter me protegido.
- Pelo menos se você estivesse aqui, eu teria com quem conversar sobre isso. Você me conhece, sabe que enlouqueço se não tenho ninguém com quem conversar...
Talvez ele estivesse me ouvindo, talvez não, mas senti uma brisa mais forte passar por mim, e trazer consigo, um aroma de laranja.
Laranja sempre me fazia lembrar Yelena, era o cheiro do seu shampoo, e eu lembrava daquele momento em que ficamos no armário, enquanto ela cuidava do meu braço. Ela era ácida, selvagem, meio arredia e misteriosa. Mas quando a beijei, seus lábios eram delicados, doces, suaves. Yelena era uma antítese natural, uma laranja, e eu nunca me esqueceria de seu rosto. Inalei profundamente o cheiro que o vento trazia e me virei para olhar.
Congelei.
Poucos metros longe de mim havia uma mulher parada, olhando para meu rosto. Era loira, estava de salto e usava grandes óculos escuros. Mas o formato do queixo e da boca eram inconfundíveis. Era Yelena.
Se ela parecia surpresa de me encontrar não demonstrou. Ela sorriu e caminhou lentamente, até parar ao meu lado em frente ao túmulo. Ela colocou uma flor em cima da lápide, e disse alguma coisa em russo. Ela não falou comigo em nenhum momento, mesmo sabendo que eu escutaria até uma receita de bolo, se ela quisesse me contar. Desisti de esperar por ela, acabei falando.
- Você parece bem.
- Você também.
Eu sei que deveria ter falado mais do que isso, mas sentia minha garganta fechada. Acabei agindo por impulso mais uma vez.
- Senti sua falta. - murmurei. - Foi o pior ano da minha vida. Os depoimentos nunca acabavam, houve o enterro, mudei de escola... - ficamos em silêncio um tempo, mas eu voltei a falar. - Meu pai está sendo investigado pela acusação de lavagem de dinheiro. Talvez ele até vá preso, e isso acabaria com nossa empresa. Mas acho que você deve saber disso, você deve ser muito bem informada.
Ela arqueou as sobrancelhas por cima dos aros dos óculos.
- Mas o que eu realmente quero dizer é obrigado. Sabe, por tudo, por ter me salvado, e tomado aquele tiro em meu lugar.
Nós ficamos em silêncio.
- Obrigada por me salvar. - ela disse, por fim. - Se você não tivesse atirado em Matthew, eu teria morrido.
- Eu não poderia deixar que morresse. - respondi. - Jamais deixaria que alguém matasse você, independente do que acontecesse comigo depois.
Seus dedos tocaram de leve minha mão, e logo a mão dela estava na minha, onde se encaixava perfeitamente. Eu apertei sua mão na minha e ficamos assim. Eu sabia que ela iria embora outra vez, que fugiria sem deixar contato. Ela era uma assassina de aluguel, não podia criar raízes, ou seria pega. Eu era de uma família poderosa, era testemunha contra Hoffmann, e estava numa maré de pessimismo de doer. Nós nos completávamos nas nossas imperfeições e problemas, mas isso não significava que ficaríamos juntos.
Eu puxei o corpo dela mais para perto e a abracei, enterrando o rosto em seu cabelo, sentindo o cheiro de laranja.
- Eu sei que você vai embora e nunca mais vamos nos ver. - murmurei, perto do seu ouvido. - Mas quero que saiba que você foi, e é, muito importante na minha vida.
Ela não falou nada, mas a ouvi suspirar. Logo nos soltamos e ela tirou os óculos, para olhar bem em meus olhos. Ainda eram da mesma cor que eu me lembrava, um bonito tom de castanho. Seus lábios sorriram, vacilantes, e colocou a mão em meu rosto. Eu tinha a louca sensação que ela queria memorizar meu rosto assim como eu queria memorizar o dela.
Yelena então aproximou o rosto lentamente do meu, incerta. Eu já não estava mais vacilante, capturei seus lábios e finalmente beijei aquela russa misteriosa e perigosa. Seu beijo tinha gosto de fruta, e eu senti que ela transmitia tudo que sentia naquele breve contato. Eu ansiava por mais, querendo nunca mais soltá-la.
Ela interrompeu o beijo e me abraçou forte, antes de murmurar.
- Não posso te ver de novo. - sua voz estava firme, mas eu sabia que ninguém dava um beijo daquele sem ter a mente num turbilhão. - Esse é um adeus.
Eu sorri e balancei negativamente a cabeça.
- Você já me encontrou uma vez, Yelena, ou você pensa que eu acredito que vir aqui foi coincidência? - eu acariciei a bochecha dela. - Quando chegar a hora, você vai saber me achar de novo, e eu vou estar aqui, esperando por você.
Ela não disse nada. Yelena recolocou os óculos, me deu um leve beijo, e se virou, caminhando apressada pelo cemitério.
Minha intuição não era das melhores, mas meu coração sabia. Apesar de tudo que acontecera, Yelena jamais seria a mesma, assim como eu não era. Poderiam se passar anos, até décadas, mas ela acabaria voltando para mim, pois eu tinha algo dela e ela tinha algo meu. Eu salvara sua vida, ela salvara a minha. Era uma dívida além do simples gostar.
E por mais que ela não viesse, que de algum jeito não ficássemos juntos, Yelena sempre seria uma mistura perigosa e viciante de nitroglicerina e laranja.
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Explosiva
ActionEra só mais um dia normal na Academia Saint Marie onde os filhos de monarcas e bilionários do mundo estudavam. Até que tudo explodiu e Fred se viu no meio duma cena de filme, com direito a espiões e tiroteios. Quem, dentre os alunos, os invasores vi...