Um

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Sempre fui muito curiosa. E essa característica me rendeu muitas cabeçadas na vida. Uma delas aconteceu quando tentei seguir Alex para sua missão secreta . Eu tinha dez anos, e tudo o que eu queria era ver meu irmão mais velho em ação. Então me esgueirei pelos portões do palácio e corri em sua direção. Fui atropelada por uma carroça que parou a tempo de não me matar ou aleijar. Mas fiquei apagada por um bom tempo, e carrego na coxa esquerda a marca de minha curiosidade. A primeira de muitas. Lúcios mexeu com minha curiosidade, minha maior fraqueza e me fez desejar encontrá-lo. Depois que o príncipe me abordou na floresta, e dançamos valsa como se ele fosse meu irmão gêmeo, ele me deixou com a frase "me encontre quando achar que estiver pronta". Isso com certeza me atiçou.

Raios preguiçosos ardem em meu rosto atravessando a janela da carruagem, mas estou cansada demais para mudar de posição, então permaneço com a cabeça recostada no ombro de Jasper. Seu cheiro acalma meus nervos e os fervilha ao mesmo tempo. Uso tudo o que possuo de autocontrole para não me entrelaçar completamente nele e beijar seus lábios na frente de todos. Preciso me conter. Quase que em provocação, Jasper deslisa seus longos dedos pelas minhas costelas acima do tecido fino da túnica, deixando um arrepio como rastro. Mantenho meus olhos fechados, fingindo dormir para que talvez o sono volta. A provocação de Lúcios me deixou acordada a noite inteira, e parecia não querer sair de meus pensamentos até aquele momento. A única forma de saciar minha curiosidade, seria dar a ele exatamente o que quer... minha presença em uma conversa séria. Jasper e Finn não podiam saber, até porque eu não havia esclarecido ainda a pequena questão que me prendia ao príncipe loiro de olhos azuis... meu noivado.

— À essa velocidade chegaremos em Elliwe antes do sol se por.

Finalmente abro os olhos para meu irmão.Zander estende um cantil para Owen enquanto aceita um pedaço de pão de Vlad. Kai permanece na posta oposta à minha, conversando com Lúcios. Edwin tenta conter a expressão de tédio, falhando miseravelmente, e Jasper estala o ombro no qual estive tanto tempo apoiada.

— E você terroso? — Lúcios interrompe a conversa que mantinha com Kai para encarar Jasper em tom provocativo— Pra que usa essa coisa na cara?

Sei que Jasper se mantém sempre calmo, mas do fundo de meu coração eu espero e anseio por uma explosão de sua parte. Mas não acontece. Em vez disso, Edwin toma partido do amigo:

— Não me envergonhe com esse vocabulário pobre, além do mais... já ouviu falar em estilo?

Lúcios solta uma expressão surpresa, rapidamente a cobrindo, e Vladmir fica extremamente interessado na conversa.

— Eu acho bem estiloso.

Ele solta. Um pouco de alívio aparece em mim quando me dou conta de que Lúcios foi colocado em seu devido lugar. Vlad não ergueu a voz nem se exaltou, só precisou de quatro palavras para desarmar Lúcios e deixá-lo sem palavras. Porque meu irmão emanava estilo, ele deixava claro até em seu falar que entendia do assunto. Na pele de Lúcios eu estaria envergonhada.

— Certo, a essa altura a primeira carruagem chegou a Elliwe avisando que chegaríamos logo depois...

Meus ouvidos se fecharam quando meus olhos encontraram os de Edwin. Senti um calafrio por todo o corpo, porque apesar de estar calado era como se estivesse falando algo. A boca não se mexia, mas os olhos suplicavam por alguma oportunidade de cuspir palavras. Não faço ideia de onde tirei essa conclusão, a conclusão de que Edwin estava sob efeito de um juramento de silêncio. Originalmente criado no reino de Rithan, o juramento do silêncio era usado quando alguém era pego descobrindo um segredo que não deveria ser. Se pega, a pessoa era persuadida a jurar pela magia da própria vida que nunca contaria tal segredo. Depois do juramento a pessoa tomava um soro que se instalaria no corpo, fazendo com que esse juramento fosse respeitado. Então se a pessoa quebrasse o juramento... o corpo involuntariamente repeliria a magia para fora. Isso é sem dúvida uma das piores sentenças para um príncipe, ainda mais um que estava prestes a assumir o trono. Mas seus olhos não estavam desesperados ontem, o que só pode significar que ele escutou algo da madrugada para agora. Não poderia ser qualquer soldado o responsável, afinal o soro não era algo barato, e o juramento não tem efeito sem o soro. Então os principais suspeitos estavam sentados comigo, balançando na carruagem rumo a nosso destino.

— O que acha?

Levei alguns segundos para entender que Vladmir falava comigo. Obriguei minha mente a se concentrar na conversa, afastando os pensamentos sobre Edwin e os suspeitos de calá-lo.

— E-eu... acho.... legal.

— Então você concorda?— um pequeno tom de raiva decora a voz de Jasper ao meu lado.

— Espera eu...

Tento explicar que não estava prestando atenção, mas ninguém parece me ouvir. Jasper eleva a voz contra Lúcios que mantém o olhar desdenhoso é um sorriso no rosto. Os outros garotos concordam ou negam, formando basicamente dois times: Edwin, Jasper, Owen e Zander de um lado, e Kai, Lúcios e Vladmir do outro, com Finn permanecendo imparcial . A discussão foi aumentando até que Jasper se levantou do lugar, agarrando Lúcios pelo colarinho da camisa. Senti meu sangue gelar, nunca havia visto Jasper daquela forma, explodindo daquele jeito. Com o que eu havia acabado de concordar? Tentando apaziguar de alguma forma as coisas, me levantei e me coloquei entre os dois garotos. Jasper se surpreendeu, mas Lúcios por sua vez mal demonstrou qualquer reação além de deboche.

— Podem parar com isso?

Minha voz mal sai e é interrompida por um movimento avassalador. A carruagem chacoalha mais do que o normal, jogando todos nós para o alto.  Lúcios aterrissa no banco e eu encima dele, Jasper cai de joelhos no chão. A cena seria cômica se não fosse... trágica. A risada de Lúcios me faz corar, me dando forças para levantar e voltar ao meu lugar. Jasper me segue, cabeça baixa pela vergonha de ficar de joelhos para outro príncipe comigo em cima.

— Não fique triste belo Jasper. Afinal, ficar de joelhos é seu destino.

Lúcios provoca, mas Jasper não morde a isca. Seu gênio calmo retorna com toda a força, o segurando no lugar. Mas sua mandíbula faz tanta força que sinto que seus dentes podem quebrar.

O tempo parecia não passar. Remexi meu cabelo, me sentei no chão na frente de Owen para que ele o trançasse, e em seguida deixei que ele desfizesse tudo e refizesse tudo de novo. Repetidas vezes. E a pergunta ainda estava entalada em minha garganta: com o que eu havia concordado? O sol chegou no começo das colinas, despejando sobre nós uma coloração laranja como o cabelo de Edwin. A carruagem passou por grandes portões de ferro e em minutos estávamos no castelo de Elliwe. A porta foi aberta para nós, mas assim os garotos começaram a descer, segurei o braço de Finn para sussurrar:

— Com o que eu concordei? Naquela hora na carruagem?

O príncipe franze a testa mas então entende que eu não havia prestado atenção. Então se aproxima e diz com cuidado:

— Você concordou que se casaria com um de nós para formar uma linhagem mais forte. Para o caso dessa guerra durar demais.

Começo a me virar, fervendo de raiva, mas a mão de Finn me detém.

— Ainda vamos decidir o mais forte...

Ele diz como se houvesse alguma esperança de que eu me juntasse com Jasper. Todos já notaram afinal. Mas lá no fundo... eu já sei quem é o mais forte. Já sei com quem vou me casar.

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora