Pelos olhos de Finn:
Arrumei minha camisa perfeitamente alinhada só por precaução. Nada deixava meu pai mais irritado do que um príncipe que não parecia um príncipe. Adiantado como um bom príncipe, saí do meu quarto com passos graciosos em direção do salão de reuniões, onde foi permitida a minha entrada a partir de hoje. Não fazer meu pai se envergonhar na frente dos lordes era tudo o que eu precisava fazer. Então aguardei cada um deles do lado de fora, lançando sorrisos comportados e elogios quanto a gestão da província de cada um. A verdade era que um era mais tolo que o outro, sendo que meu pai os acompanhava logo atrás. Devido à guerra desnecessária contra Rithan, nosso reino desperdiçou recursos demais no exército, e não nas coisas mais importantes. Nosso povo sofria nas aldeias menores com impostos que já não podiam pagar, recebendo como única alternativa a morte. E tudo isso para ter o melhor exército do país, sendo que havia um país de distância para Rithan, então nem terras poderíamos ganhar dessa guerra estúpida de Kibtaysh não concordasse.
— Boas novas filho.
Meu pai soltou com um sorriso lupino, os olhos dos lordes calculadamente em mim esperando minha reação . Então como um bom príncipe, fiz uma generosa reverência e modelei minha voz para um filho sempre grato:
— E poderia eu ter o prazer de sabê-las também meu pai?
Não precisei olhar para os lordes pois senti os olhares de aprovação grudarem em mim. Saindo daqueles gordos sustentados pelo sofrimento do meu povo, sugadores de dinheiro que aprovavam as decisões do meu pai enquanto ele enchia a pança deles de joias.
— O rei de Kibtaysh nos convidou para passar um tempo em seu castelo, provavelmente pensando em nossos exércitos, imagino.
Encarei meu pai tentando conter o olhar de nojo ao perguntar com minha voz mais inocente:
— Vossa Majestade deseja que eu corteje a única filha dele eu suponho...
Um enjoo me subiu pela garganta, mas eu engoli em seco para contê-lo. Afinal, era meu destino. Enquanto meus dois irmãos mais velhos foram criados para serem candidatos ótimos para o trono, eu fui criado para ser o príncipe perfeito. Não um rei, ou sequer um homem que pensa por conta própria. Assim que minha mãe viu que meu cabelo dourado brilhava mais que o normal, que meus olhos refletiam o oceano de um modo que nenhum outro fazia, minha mãe decidiu que eu devia ser usado para outra finalidade além de reger meu próprio país. Me criou para ser um príncipe perfeito que conquistaria o coração de qualquer mulher a sua frente, me ensinou os jogos das paixões e como eu deveria usar ao meu favor. Favor de meu pai. E eu como um bom príncipe aprendi. Enquanto Bell e Noll tinham aulas e treino intenso, eu cortejava as damas como treino. E ganhava minha fama de príncipe perfeito.
— Meu filho é mesmo um garoto esperto não?
Ele olhou de soslaio para os nobres ao seu redor, que não ousaram discordar. Eles sorriam com gratidão forçada, e proferiam elogios mais que exagerados. Exibi meu maior ar de triunfo, como se aquilo de alguma forma me distanciasse da repulsa que sentia por ser usado assim. Eu parecia mesmo o príncipe perfeito a qualquer um que olhasse de perto ou de longe. Parecia mesmo um garoto sortudo por não precisar carregar o peso de uma coroa, ter pais amorosos e pouquíssimas tragédias na vida. Quem reclamaria de uma vida assim?
— Bom, essa reunião foi apenas para te avisar pra fazer as malas. Vamos ficar por tempo indeterminado. Esteja pronto daqui a dois dias.
O rei se levantou do trono e pousou uma mão em minhas costas apertando cuidadosamente os sulcos que se formavam da elevação entre uma cicatriz e outra que eu carregava. Para qualquer pessoa, ele parecia um pai preocupado e atencioso, mas nós dois sabíamos que ele me lembrava silenciosamente que poderia me dar presentes como aqueles se eu saísse da linha.
— Não me envergonhe certo?
— Certo vossa Majestade.
Com uma reverência longa me retirei do salão, podendo em fim soltar o ar que segurava de nervosismo em meus pulmões. Me enfiei em meu quarto pelo resto do dia, onde eu podia ler e escrever, onde eu podia ser eu mesmo. Não um boneco de luxo da minha mãe, ou uma marionete do meu pai. Mas eu, Finn, só Finn. Sem título ou obrigações, somente os livros a pena com tinta e o papel, minha imaginação sem limites. Um garoto sonhador... Bell me chamou uma vez quando entrou em meu quarto me pegando debruçado em cima de um de meus projetos. Um artista nato... Noll me dizia. Ainda que eu insistisse em minha falta de talento nas telas, meu irmão do meio insistia que palavras em papel podiam ser tão coloridas quanto se bem colocadas no contexto certo. Meus dois irmãos, meus dois pilares. Diferente de mim, com cicatrizes à mostra . Diferente de mim, podiam mostrá-las como troféu de campos de batalhas, não como vergonhosas marcas de um pai corrigindo o próprio filho. Quando me acostumei com as linhas no entanto, a dor ficou mais suportável. Não a dor do corpo, essa aumentava a cada veneno novo que meu pai testava em mim. Digo a dor da alma, que eu sufocava cada vez mais até que se tornasse um sussurro nervoso da escuridão.
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O herdeiro negro
ContoDepois de juntar todos os herdeiros do país dourado, os cinco amigos e mais alguns agregados entram em uma missão para fortalecer a si mesmos e retomar o controle das mãos do herdeiro negro. Mas intrigas e confusões esperam pelos príncipes e princes...