Vinte e dois

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Meu pai e a realeza de Bulhart chegaram a salvo em seus respectivos reinos. Nenhum dos dois se deparou com incidentes ou resistência ao tomar o reino de volta, isso só me provava minha teoria: o herdeiro negro estava conosco. Infelizmente, eu amava todas as pessoas ao meu redor até aquele momento, amava cada um como se os conhecesse a muito tempo. Mas eu sabia que um deles era o vilão, sabia que um ou mais poderia ter nos traído. A princesa Jeanna não ficou nem um pouco mais suportável. Eu era obrigada a jantar com ela todas as noites, mas pelo menos agora tinha o apoio de Lúcios e Finn ao meu lado, os dois ganhadores que se sentavam mais perto de mim pela alta pontuação. Quanto a Jasper... eu o via cada vez menos, nossos encontros reduzidos por sua baixa pontuação, e monótonos como se dois desconhecidos fossem obrigados a namorar. Ele puxava assuntos banais como o clima e a disposição dos sentinelas no palácio, conversava quase sozinho durante cinco minutos, e então ia embora me deixando sozinha. Tudo para não tocar em assuntos delicados como a luta ou minha revolta depois dela. Tudo para não falar sobre sua conversa no jardim que escutei, ou sobre sua história mais que antiga com Lúcios. Mas eu já me acostumava com a falta dele, ao ponto de achar melhor assim. Pensei em formas de me arrastar de volta a ele mas... desisti. Porque quando tentei beija-lo pela última vez... algo havia se quebrado.

Observei meus próprios pés descalços caminhando pelo chão gelado de granito, a pedra me causando arrepios a cada passo. Minha rotina acabava quando eu saía do jantar com Lúcios, que se ajoelhava para tirar meus sapatos, sapatilhas ou saltos, e caminhávamos por nosso corredor juntos. As vezes ele entrava em meu quarto e dormíamos juntos. Apenas abraçados e vestidos, uma corrente enérgica fugindo entre nossos corpos. Era bom tê-lo por perto, um amigo como ele era sem dúvida muito bom.

— Eu me pergunto...

Começo pensativa, tocando a ponta do nariz com o dedo. Lúcios diminui o passo quando percebe que está um pouco na minha frente, ansioso para a continuação de minha frase.

— Você é um príncipe poderoso, herdeiro de Rithan e com certeza um homem disputado por sua beleza...

Lúcios arregala os olhos quando percebe que admito estar ciente sobre sua beleza. Arfando o peito como uma pomba exibida, ele assente com um sorriso largo no rosto.

— Mas... para uma princesa raquítica de Kibtaysh, com cabelos horrivelmente vermelhos, e beleza questionável, que nem herdeira é, você se ajoelha todas as noites apenas... para aliviar a dor dos pés dela.

Chegamos na frente da porta rosa do meu quarto e já entramos, Lúcios age como se o quarto já fosse dele. Ele joga o casaco no sofá e ajeita minhas sapatilhas pretas que segurava em uma parte do guarda-roupa enorme. Em um movimento gracioso, o príncipe tira os próprios sapatos e se estica na cama.

— Primeiro— ele levanta um de seus longos dedos para dar ênfase a explicação— não sei o que significa raquítica para você senhorita Kali, mas seu corpo é monumental, é lindo, é tudo menos raquítico.

Sinto minhas bochechas queimarem, corro para o biombo e começo a retirar o vestido simples para colocar minha camisola.

— Segundo— Lúcios continua mais alto, para que eu ouça mesmo mais longe— sua beleza não é questionável, ela é mais que nítida para sua informação, e seu cabelo é igualmente perfeito.

Saio de trás do biombo com os braços cruzados é uma expressão de sarcasmo. Mas Lúcios me agarra e me joga na cama, prendendo meus braços para impedir que eu me solte.

— Terceiro... eu só me ajoelho a você, e a mais ninguém.

Me sento sobre a cama assim que Lúcios solta meus pulsos, inconscientemente sinto falta do toque. Ele olha sobre o ombro para a janela aberta, que revela a lua pela metade, e estrelas salpicadas no céu negro. Salpicadas como as sardas castanhas em suas bochechas, sinais tão fofos em um rosto tão lindo .

— Minha mãe... ela era ruiva como você. — Lúcios diz quando seu olhar se volta para mim— Acho que a junção do cabelo dela com o do meu pai... acabou criando uma cor diferente para Ed. E para Cora. Ela era absolutamente linda e... pra mim seu cabelo a torna ainda mais linda.

Lúcios passa seus longos dedos pelos meus cachos, tão delicadamente que nem parece um príncipe guerreiro. Ele olha meus fios com admiração, os contempla como se fosse a obra de arte mais linda. Então aconteceu de novo, seu olho direito começou a ficar roxo, como no dia em que acordei ao seu lado. Aquilo não havia se repetido até aquele momento, mas procurei manter a calma por causa do outro incidente.

— Lúcios. Quero que confie em mim.

Ele franze as sobrancelhas, mas continua acariciando meus cabelos em movimentos leves e constantes. Nos ajeitamos não cama, de forma que eu apoio minha cabeça em seu braço, as mãos em seu peito firme, enquanto sua outra mão mantém o carinho em meu cabelo contínuo. É quase impossível me concentrar, sinto minhas pálpebras caindo mas me obrigo a me concentrar.

— Por que seu olho fica roxo?

O movimento subitamente é interrompido, e o príncipe ao meu lado solta um suspiro longo. Quando penso que aquela conversa morreu ali, ele me abraça apertado, e por um segundo poderia jurar que ele estremeceu.

— Meu pai era um cientista. A linhagem real era pela parte da minha mãe, então ele não tinha poderes a princípio. Então ele fez experimentos e... acabou adquirindo poderes, mais fortes do que a minha mãe tinha por nascença. Então quando eu nasci... ele decidiu que fazer experimentos comigo era uma boa ideia. Então foi comigo que começou. Minha mãe nunca interferiu, nem quando eu quase morri por perda de sangue. Com meus outros irmãos foi a mesma coisa... menos com Cora. Depois que minha irmã morreu, eu fiquei fora de controle, por isso meu pai tentou tirar meus sentimentos. Mas ele só conseguiu limita-los, porque ficou quase em estado vegetativo depois de Edwin roubar seus poderes. Minha mãe pela primeira vez tomou uma atitude, e me submeteu a uma pequena... cirurgia. Ela implantou uma ametista encantada por trás de um de meus olhos. Essa joia tinha o poder de desbloquear minhas emoções quando minha mãe achasse que vale a pena. Ela deixou um pequeno sistema no meu cérebro para que ele conseguisse avaliar as situações sozinho. Ela tentou reativar as emoções por completo, mas isso me mataria, assim como mataria Edwin se sua segunda personalidade fosse arrancada.

Escuto seu coração por baixo do tecido fino da camisa, quase grata pela explicação. Quando eu vi aquele olho ametista brilhar, pensei que fosse uma maldição ou algo do tipo.

— E se ele brilhar duas vezes para a mesma pessoa.

Lúcios solta uma risada fraca enquanto responde com a voz rouca, a milímetros do meu ouvido:

— Impossível. Segundo minha mãe, pra ele brilhar pra mesma pessoa duas vezes eu teria que amar, mais que amar, estar completamente apaixonado. E não me sinto assim ainda. Não aconteceu nem com Mayra e eu a amava.

Meu coração se encolheu, mesmo sabendo que nos conhecíamos a pouco tempo, e que a competição decidiria meu futuro. Mesmo depois de sair de um relacionamento amoroso eu de alguma forma... me machuquei quando a ideia de me amar pareceu tão impossível pra ele. A ametista em seus olhos podia mentir?

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora