Dez

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Mergulhei na banheira me agarrando a água fria como se fosse uma âncora. Deixei que meu corpo absorvesse toda a frieza que um dia de sol e príncipes quentes não foi capaz de me proporcionar. Meu corpo se arrepiava, mas eu simplesmente me recusei a sair da banheira até que a água evaporasse, uma reação exagerada da minha pele quando entra em choque. Já na banheira seca, segui para o quarto e deixei que Nani e Buni me embelezassem para o jantar, jantar esse em que fingiríamos que não estávamos mortos de cansados para a corte de Elliwe. Me arrastei pelos corredores reclamando mentalmente dos brincos pesados, os saltos altos ecoando sons por todo o lugar.

— Não é elegante uma princesa resmungona.

Lúcios, o príncipe que coincidentemente possuía um quarto no mesmo corredor que o meu, me seguiu de perto pelo corredor, as mãos juntas atrás das costas em uma pose de admiração cautelosa.

— Se você precisasse usar saltos deste tamanho príncipe, tenho certeza que mudaria sua opinião.

Levantei levemente a bainha do vestido para que ele visse os longos saltos em que as servas haviam me enfiado. Eles eram especialmente lindos, quem os via podia jurar que eram feitos de cristal, mas era apenas plástico bem polido. O príncipe sorriu com uma confiança extrema se ajoelhando na minha frente para retirar um dos saltos. Não protestei contra o ato, apenas me apoiei contra uma parede enquanto ele analisava o objeto em suas mãos.

— Sabe, eu acho que não deve ser tão ruim assim. Por que não vai descalça? Seu vestido é grande o suficiente para que seus pés não apareçam.

Tentei tomar o salto de suas mãos, mas ele o ergueu acima da cabeça me observando de cima a baixo em um desafio silencioso.

— Seria inadequado comparecer a um jantar importante com a corte sem sapatos, além disso, o vestido ficaria se arrastando no chão.

Pensativo por um instante, o príncipe perdeu a concentração do salto que mantinha nas mãos, então consegui me esticar e recupera-lo. Mas assim que comecei a abaixar para calça-lo, Lúcios me impediu, se ajoelhando novamente aos meus pés. O salto deslisou por entre meus dedos quando ele os tomou, e colocou delicadamente no meu pé, encaixando as curvas transparentes nos meus calcanhares. Seus dedos roçaram meus tornozelos, lançando milhares de fagulhas por todo o meu corpo, como em um choque infinito. Mas me recompus, ajeitei o cabelo puxando alguns cachos para frente, e segui meu caminho com o nariz erguido. Mesmo sabendo que o príncipe me seguia, mesmo com meu coração errando as batidas conforme seu cheiro se instalava cada vez mais em mim.

Ao chegarmos a entrada do salão de jantar, o príncipe me estende seu braço, provavelmente porque eu estava andando um pouco torta pelos sapatos que já machucavam meus pés. Então pelo conforto, e nada além disso, me apoiei sobre ele e adentramos o salão. Ainda faltavam algumas pessoas, observei conforme Lúcios me conduzia pelas mesas para enfim me ajudar a sentar na mesa dos convidados de honra, na qual eu meus irmãos e os príncipes ficamos desde nossa chegada. Jasper franziu a testa quando viu minha proximidade com Lúcios, mas me sentei ao seu lado, ignorando o príncipe insistente que se sentou ao meu lado.

— Como se sente, ganhador?

Perguntei tentando quebrar o clima fio que Jasper me recebeu. Teríamos muito mais tempo juntos na semana, mas não muito mais que Lúcios já que ele só fora pior pela velocidade. A rainha dissera que na prática, eu estaria mais segura com Lúcios já que os soldados podiam chamar reforços, e correr para sempre não era uma opção. Mas Jasper ganhou de acordo com as regras. De qualquer, eu sei que o objetivo dele era ganhar, não me proteger da melhor forma, afinal não era de verdade. Não era necessária uma proteção como a de Lúcios em uma situação dessas... certo?

— Ganhador apenas no fim dos jogos. Mas você viu o que eu fiz na floresta?

Seus olhos brilharam de orgulho por seu feito, meu peito se estudando igualmente. Sorri e desejei que ele não mais insistisse em esconder o rosto até para os jantares, desejei que ele se mostrasse apesar das cicatrizes. Não havíamos conversado sobre a parede de terra ainda, mas foi realmente impressionante.

— Foi incrível sim! Mas...

Eu ia perguntar como ele correrá sem derramar uma gota de água sequer da taça. Mas minha frase foi cortada pela entrada do rei e da rainha, que desfilaram lindamente com a filha atrás e... Kai ao seu lado. Diante da minha explícita expressão de espanto, Lúcios aproximou seus lábios da minha orelha para sussurrar:

— O ganhador tem direito de se sentar com a princesa, e como Kai ganhou as duas primeiras provas, pode se sentar sozinho ao lado dela.

Voltei a me recostar na poltrona ainda um pouco inquieta. Kai não era o mais habilidoso de nós nas florestas, Zander era mil vezes melhor. Como então meu irmão dos bosques foi passado para trás? Sem falar que nas aulas teóricas Kai era sem dúvidas mediano. Owen devia ter conseguido o primeiro lugar na primeira prova, então como...

— Gostaria de fazer um pedido.

A voz de Jasper ecoando pelas paredes cinza azulado do salão me acordou de meu transe. Olhei para o garoto, agora posto de pé em reverência pelo soberano que o escutava com atenção.

— Diga príncipe de Orn. Qual é seu pedido?

— Vossa Majestade, eu gostaria que minhas irmãs pudessem passar a viver aqui antes da guerra se me permite... não as vejo a um bom tempo, e sinto que as protegeria melhor ao meu lado.

O rei o olhou de cima a baixo com atenção, provavelmente matutando os possíveis inconvenientes vindos dessa permissão. Mas então sua carranca se abriu em um leve sorriso antes de dizer:

— E por que não? Ordenarei que um grupo de soldados as busquem já que você deve ficar concentrado na prova. Até semana que vem elas já estarão bem alocadas.

Com uma reverência, o príncipe voltou a se sentar, e as pessoas voltaram para seus respectivos jantares conforme os segundos se passavam. Uma pequena ansiedade se enrolou em meu peito. Eu iria conhecer as irmãs de Jasper, será que isso seria bom? E se não gostassem de mim, e se...

— São esses os reais motivos para trazer suas irmãs soldado?

Lúcios ronronou do meu lado esquerdo, uma provocação silenciosa ao não reconhecer Jasper como príncipe. Ele provavelmente sabia do tempo de Jasper a Edwin, sabia que era por isso que não via suas irmãs a muito tempo. Mas o príncipe ao meu lado direito não fez menção de irritação, apenas acompanhou o movimento de Lúcios girando a taça de vinho com o olhar.

— E quais outros motivos eu teria, Luci?

Se eu não conhecesse o modo arrogante e prepotente de Lúcios, podia jurar que ele tinha se encolhido. Com um sorriso felino exibindo os caninos afiados, o príncipe negro bebeu elegantemente de seu vinho, e se virou completamente para Jasper, que também ignorava minha presença.

— Não sei soldado. As pessoas precisam de munição para guerra certo?

Os olhos dos dois se semicerraram quase ao mesmo tempo. Toda a nossa mesa pareceu concentrar sua atenção nos próprios pratos. Ninguém pareceu notar a tensão que emanava dos dois corpos ao meu redor, então eu travei. Eu não estava nervosa, muito menos com medo... mas travei. Aquela sensação sufocante de não conseguir mexer parte alguma do meu corpo, a perda total do controle... consegui ao menos encarar Zander, que percebeu a situação e me arrastou de lá.

— Está tudo bem, shhhhh, calma.

Meu irmão apertava meu corpo contra o dele conforme lágrimas sem sentido rolavam por minhas bochechas. Eu chorava, mas não estava triste. Não estava com dor, nem desconfortável... o que havia de errado comigo?

Quando todos os meus músculos voltaram a trabalhar normalmente, abri e fechei as mãos devagar me reacostumando com a sensação do movimento. Então pedi que meu irmão me deixasse sozinha no corredor, porque eu sabia que ao ir para o quarto Jasper me esperaria lá depois de pular a janela. E por algum motivo, não era ele quem eu queria ver naquele momento .

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora