Havia uma pequena fresta, apenas uma pequena fresta entre as portas do armário em que eu e Emory estávamos escondida, uma fresta que me dava visão parcial do salão de reuniões. O rei não estava, nem os irmãos mais novos de Emory ou as irmãs de Jasper. Apenas os concorrentes, suspeitos de traição à coroa de Elliwe, ao nosso país dourado. A rainha caminhava pela sala silenciosa, seus saltos altos ecoando por todo o recinto, sua pose autoritária provavelmente lançando arrepios até para aquele príncipes metidos a heróis.
— Sabem porque estão aqui. — a rainha astuta se aproxima de Edwin, meu principal suspeito enquanto deslisa as unhas bem feitas pelo uniforme de Finn ao seu lado— Sabem que um de vocês é o herdeiro negro, e visto que todos parecem tremer, pelo visto sabem muito bem quem é.
Emory esperta minha mão conforme a tensão no local aumenta . Quase palpável.
— Interessante que alguém fora de Rithan conheça o juramento Rithanico tão bem ao ponto de prender sete pessoas em suas teias cuidadosas.
Então era isso. Sete dos oito príncipes estavam sob juramento de alma, todos ali sabiam quem era o herdeiro negro. Tentei fazer meu coração se acalmar, mas era inútil, devido às circunstâncias críticas em que eu me encontrava. Apertei a mão da princesa ainda mais forte, compartilhando meu medo na tentativa de deixá-lo mais suportável. Mas por que a rainha havia desconsiderado Edwin? Era Rithanico e conhecia muito bem o juramento....
— Sabe, trancar as princesas foi o que me fez ter certeza. Mas eu já desconfiava. — a rainha começou a rondar os príncipes novamente, um pingo de ódio decorando suas feições delicadas— Seria muita maldade mesmo se o amor de Kali a manipulasse desde o começo apenas para achar o anel de Ônix.
A rainha suspira quando olha para Lúcios. Um terror percorre minhas entranhas quando me lembro de tudo o que sentia com ele, tudo o que desejava para nós antes daquela revelação. Meu coração quase saiu pela boca, mas antes disso a rainha continuou:
— Bom, sorte dela que não foi o caso. Seria triste também se o mesmo ocorresse com o príncipe inteligente— a rainha olha para Finn, quase indiferente... — mas ainda bem que você não é o herdeiro negro, se fosse já estaríamos em suas mãos. Ah!
A rainha exclama se virando para Jasper, que a encara inexpressivo. Dessa vez é Emory que aperta minha mão, como se torturada pela demora da mãe para desmascarar o vilão de uma vez. Contenho um suspiro dentro do peito, e tento não fazer barulho ao me aproximar ainda mais da fresta.
— Seria igualmente triste ser traída pelo guerreiro que a ensinou tanto. Mas não foi esse o caso, foi? Nem ao menos foi seu grande amigo. — a rainha cantarola lançando outro olhar para Edwin— Não... a princesa ficaria grata se fosse seu grande amigo. Porque nada se compara a real traição que ela sofreu.
Meu peito se aperta conforme sinto meu coração se encolher, ficando do tamanho de um grão de feijão. Meus irmãos permanecem enfileirados, um ao lado do outro estupidamente confusos. Olhavam para a rainha buscando algum sentido naquilo tudo, mas um deles mentia. Se não eram os príncipes.... o herdeiro negro era meu irmão. Os outros príncipes se afastam ameaçadoramente, as mãos nas espadas à espera de qualquer ataque. Nenhuma palavra foi pronunciada naquela sala que não viesse da boca da rainha até aquele momento. Quando ela analisou meus irmãos um a um e com pesar perguntou:
— Diga-me Kai. Qual é o gosto do sangue de seu irmão?
Meu mundo pareceu ruir, o chão sob meus pés já não existia quando despenquei no armário de armas, impedida de atingir o chão com os joelhos apenas pelos braços de Emory ao meu redor. Então eu vi. Pela fresta, eu vi os olhos de Kai brilharem com um ódio mortal.
— Isso depende. Na verdade, o melhor sangue que provei foi o de Alexander . Talvez a burrice de Arlo tenha contaminado todo o resto do corpo.
Minha cabeça girou. Incapaz de pensar por um segundo que Kai poderia ter... matado seus próprios irmãos. As cenas em que ele se aproximou de Lúcios de repente ficaram claras para mim. Não foi Lúcios se aproximando e tentando contagia-lo, fora ele o tempo todo envenenando-nos com intrigas que ele sabia como funcionava. Porque ele me conhecia de dentro para fora, entendia como eu funcionava.
— Sabe, estou curiosa... como conseguiu interpretar tal papel por tanto tempo?
Sinto um oco dentro de mim, como se uma parte estivesse faltando. Tento tatear no escuro por Kai, em busca de meu gêmeo que sempre me sentia quando ninguém mais ouvia minhas lágrimas. O príncipe Kai, herdeiro que corria comigo pelos campos me incentivando a largar os saltos, que gritava comigo quando eu me machucava enquanto cuidava do machucado. O Kai que me levava café da manhã quando eu adoecia ou simplesmente não queria sair da cama. O Kai que me amava, se preocupava é um dia jurou dar a vida por nosso reino... não era o mesmo homem que ali naquela sala admitia tentar destruí-lo.
— Ah foi fácil. Afinal, Kali sempre foi a filha predileta de todos os sete, os irmãos mais velhos a mimavam quase mais que nossos pais. Eu cresci tendo que aturar dividir a atenção, receber broncas mesmo quando ela queimava as coisas e eu tentava manter tudo na linha. Enquanto eu era uma versão unida de todos os irmãos só que pior, ela era a minha versão aprimorada. Sempre foi. Mas então, um dia eu descobri que podia fazê-la... travar.
Meu coração não batia mais, agora ele latia. Latia tão alto que eu quase pensei que poderia nos delatar pelo som alto que reverberava meus ossos. Todas as vezes em jantares, em festas, ou em eventos importantes. As vezes em que eu tinha pesadelos... em todas elas Kai estava por perto. Mas agora eu sabia, que não era para me ajudar ou dar suporte... era ele quem me fazia travar.
— Um tempo depois descobri o que aquilo tudo significava, descobri que sangue aumentava meu poder. E sangue com poder... ficou cada vez mais fácil me alimentar de Kali às escondidas, mas então aquela merda toda aconteceu e ela sumiu. Eu sabia que ela estava em Kibtaysh porque ainda sentia ela por perto, sabia que ela era a herdeira. Por coincidência nosso pai pensou que eu era o herdeiro, mas Arlo me pegou falando com um de meus homens e ameaçou me delatar. Tolo idiota disse que eu não precisava tomar o trono, disse que ele já seria meu. Mas não era bem assim, certo Edwin?
Edwin tentou me convencer, e conseguiu, a reclamar o trono de Kibtaysh, me fez acreditar que eu era capaz. Mas eu nunca imaginei as consequências que aquilo traria a Kai. Ele não parecia se importar, não dá forma que seus olhos brilhavam naquele momento, orgulhoso por cada feito.
— Ah claro, tive que envenenar papai o suficiente para que ele me passasse o trono antes de Kali voltar, e incriminei Arlo. Mas outro contratempo, meus homens atacaram este castelo de forma errada, e foram derrotados por um certo... príncipe. — Kai olha enraivecido para Edwin novamente, que para seu crédito não desvia o olhar. — Ah, depois disso vocês sabem, enfraquecer as princesas, me apossar de uma e controlar o homem que estiver com a outra. É isso era fácil quando o esquentadinho do Jasper e o empolgado de Edwin eram opções. Mas o problema foi Lúcios abrir seu lindo coração negro.
Kai faz beicinho para Lúcios e depois manda uma provocação para Jasper, com a voz áspera:
— Eu torcia por você.
Os garotos pareciam de alguma forma menos tensos. Talvez quilo fosse tudo o que sabiam, os livrando por fim do juramento de alma que tinham que obedecer. Mas a tensão voltou quando Finn ficou rígido ao perguntar:
— E porque contar isso agora para a rainha?
Até ela pareceu confusa por alguns instantes. De fato não fazia sentido revelar tudo aquilo se ele ainda tinha a opção de controlar alguém para assumir a culpa, ou fugir. Mas seu rosto mudou. Algo maligno se apossou dele, e quando sua cabeça pendeu para o lado de uma forma brincalhona, não foi seu rosto que sorriu dizendo:
— Isso não é óbvio? Não vão sair vivos daqui para contar a qualquer um.
Quem falou não foi Kai, meu Kai, meu gêmeo. Quem falou foi o herdeiro, e nada além disso. Obedeci as ordens da rainha e puxei a alavanca verde o mais silenciosamente que pude, enquanto repetia para mim mesma: aquele homem não é meu irmão.
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O herdeiro negro
Short StoryDepois de juntar todos os herdeiros do país dourado, os cinco amigos e mais alguns agregados entram em uma missão para fortalecer a si mesmos e retomar o controle das mãos do herdeiro negro. Mas intrigas e confusões esperam pelos príncipes e princes...