Quinze

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Foi no jantar que tudo deu errado. Depois de minha magnífica manhã com Finn, o príncipe ainda me ajudou a encontrar uma corrente para prender a chave. Nós a limpamos e acorrentamos ela ao meu pescoço, então Finn me deixou com a promessa de que me ajudaria a encontrar onde a chave se encaixava assim que Lúcios me deixasse livre. Almocei ao lado de Jasper, trocamos sorrisos e piadas mas algo entre nós pareceu... diferente. Ainda era estranho vê-lo de máscara depois das incontáveis madrugadas que passamos juntos, madrugadas essas que se acabaram junto com o tempo que ele tinha para nós. Era provisório, lembrei a mim mesma, é só pela guerra. Mas então, treinei metade da tarde com Lúcios antes de tomar chá com Edwin, e quando eu entrei no salão de jantar naquela noite, eu podia sentir que algo ia dar muito errado.

O rei se ajeitou em sua poltrona quando um mensageiro anunciou a chegada das irmãs de Jasper. Isso mesmo, irmãs no plural, incluindo a suposta garota morta que Lúcios amou como amiga. Ele não pareceu notar esse pequeno detalhe, até as portas se abrirem com um estrondo, revelando duas garotas de braços entrelaçados. Se eu já não soubesse que eram gêmeas, com certeza concluiria naquele momento. As duas tinham feições quase idênticas, tirando duas pintas que possuíam, uma no lado esquerdo, e a outra no lado direito do rosto. Ambas tinham cabelos castanhos quase chegando na cintura, lisos de uma forma que eu nunca havia visto. Seus olhos brilhava daquela forma orniana, azuis como cristal. A que era milimetricamente mais alta, sorria para toda a corte, cumprimentava cada alma viva e emanava simpatia. Já a outra, mantinha a carranca, não... uma cara de enjoo ou algo parecido com tédio. Elas pararam na nossa mesa que continha duas cadeiras a mais que o normal, e a primeira se sentou, enquanto a outra me fitou por quase um minuto antes de dizer:

— É por isso que estão lutando?

Lúcios, que ainda fitava a garota a minha frente com a boca aberta sem nenhuma palavra, se ajeitou e apertou minha mão debaixo da mesa. Jasper não fez menção de dizer uma palavra, apenas mastigou a própria comida.

— Não é bem uma luta sabe...

Edwin finalmente se coloca ao meu favor quando a garota decide finalmente se sentar. Bem na minha frente. Ela continua a me citar durante todo o jantar, mas só volta a abrir aquela boca desnecessária quando já estamos quase no fim.

— Tatuagem nova Luci?

O apelido não me é estranho... Jasper o usou para provocar Lúcios alguns dias atrás, mas vindo da voz da garota, parece muito mais com uma ameaça. Lúcios engasga com a comida e faz um esforço enorme para evitar olhar para a garota quando responde:

— Só as antigas. Não alcanço as extremidades que faltam para tatuar.

Para seu crédito, a voz de Lúcios sequer tremeu enquanto ele respondia. Mas o aperto de sua mão contra a minha me dizia que ela estava morta de outra forma para ele. A garota semicerrou os olhos enquanto percorria cada centímetro de pele a vista de Lúcios com os olhos. Lancei um olhar nervoso para Jasper, mas tudo o que ele fez foi dar de ombros.

— Eu poderia te ajudar com isso você sabe.

Era o suficiente. Não sei se pelo desconforto de Lúcios, ou pelo meu próprio, me descontrolei completamente quando disse:

— É o seguinte garotinha, seja muito bem vinda mas vou deixar umas coisas bem claras, todos os garotos que você vê nessa mesa estão temporariamente indisponíveis, o que significa que você pode procurar alguns guardas ou algo assim para te satisfazer está bem? Quando a competição acabar você pode ficar com os que sobrarem, mas até lá eles são meus e de Emory. Ficou claro?

Eu não queria usar a palavra "meus" e nem "sobrarem", mas era uma realidade de certa forma. E nenhum dos garotos pareceu ligar muito. Eles até relaxaram depois que a garota exibiu uma cara de espantada.

— Perdoe minha irmã... — a garota ao lado da carrancuda disse — Jeanna está cansada da viagem. Isso não vai se repetir...

A irmã parecia realmente envergonhada pelo comportamento de Jeanna, e por isso eu voltei minha concentração para outro lugar, para minha mão entrelaçada na de Lúcios. Então meu coração se acelerou, e eu não sei dizer o porque, mas quando Jeanna retrucou, eu tive mais que forças para responder de volta:

— Estou cansada mas ainda posso fazer a terra engolir esse castelo se eu quiser.

— Queimo você de dentro pra fora antes que consiga sequer tentar.

Eu sei que era minha imaginação, mas por um momento pude sentir meus olhos faiscarem com a ideia. Encarei a princesa até que ela desviasse o olhar, os corpos tensos ao nosso redor voltando a relaxar. Ainda com os nervos a ponto de estourar, pedi licença e me retirei da mesa, não por intimidação ou nada parecido, mas porque eu já havia acabado minha refeição, e não confiava no meu coração perto de Lúcios por mais muito tempo.

Meus saltos ecoavam no corredor, então os tirei para caminhar em silêncio. Graças a isso testemunhei a grande briga. Não fui para meu quarto apesar do cansaço, em vez disso me desviei para o jardim e me joguei entre dois arbustos altos para não ser vista. O que foi ótimo, porque menos de dez minutos depois escutei vozes familiares.

— Se quer conquista-lá esse não é o caminho — Era Lúcios.

— Não preciso, ela já me ama. E sei que mesmo se eu fosse o mais fraco, ela ainda me escolheria. Então nunca vai se livrar de mim. — Esse era Jasper.

— Ei vocês dois, esqueceram da última briga ou o que? Pensei que entrariam em acordo!— no meio dos dois estava Edwin.

— Se está tão seguro disso, por que quer me machucar?

Na voz de Lúcios continha certa mágoa. Uma vulnerabilidade que eu nunca pensei que ouviria dele. Era a voz de alguém ferido, alguém cujo o coração estava dilacerado.

— Ah ora ora Edwin, seu irmão tem coração? Não vai me dizer agora que se apaixonou de verdade pela princesa?

Meu coração deu um salto dentro do peito quando veio o silêncio. Lúcios não respondeu. Os garotos não pareciam querer deixá-lo em paz, então me remexi na grama, chamando a atenção dos rapazes para minha direção.

— O que foi aquilo?

Jasper perguntou. E antes que eu me desse conta, fui erguida no ar por nada além de... vento. Fiquei suspensa no ar, o rosto paralisado em susto e excitação. Eu estava praticamente voando! Mas meu sorriso sumiu quando vi Jasper pálido na minha frente, pálido pelas coisas que havia dito, o modo com que falou. Edwin abaixou os braços antes estendidos, e eu desci graciosamente para mais perto deles, até meus pés tocarem a grama. Os três garotos estavam surpresos, mas Jasper estava assustado de verdade. Eu não me importava mais, decidi que meu reino e meu futuro eram mais importantes que amar um homem que me escondia coisas. Mas também não queria tomar nenhuma decisão precipitada, da qual eu poderia me arrepender. Então apenas catei meus saltos no ponto onde havia deixado, e puxei a manga de Edwin, para que ele me seguisse. Ninguém nos impediu. E naquela noite, eu entendi um pouco mais sobre o ódio, e cicatrizes na alma.

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora