Nove

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Edwin ao contrário de Finn, fora cuidadoso na volta e não na ida. Isso me rendeu algumas manchas de tinta nas costas conforme corríamos para o lago, mas ao tomar um caminho diferente na volta, conseguimos evitar qualquer soldado. Quando chegamos ao ponto de encontro, a taça permanecia cheia, e a rainha com sua postura rígida e observadora. Edwin saiu do meu lado e esperou que os guardas retirassem as manchas de tinta das minhas costas enquanto Jasper já pegava sua taça. O nervosismo pareceu um soco em meu estômago, retirando qualquer ar que insistisse em estar em meus pulmões. Meu coração já não batia normalmente, até o suor das mãos me deixava nervosa. O príncipe se colocou ao meu lado e tocou gentilmente meu cotovelo, indicando que começássemos a andar. Quando já havíamos deixado todos para trás, Jasper se vira pra mim com os olhos sérios:

— Vamos correndo e voltamos correndo, não se preocupe... posso te protejer.

Era difícil acreditar que Jasper podia me defender de absolutamente todos os lados, mas seus olhos brilhavam com tanta confiança, que não tive forças para discutir. Beijei sua bochecha através do tecido negro que cobria tudo abaixo dos olhos, e me preparei para correr. Um sinal, e comecei. Corri o mais rápido que pude, porque se ele falhasse pelo menos eu tinha minha velocidade e resistência, graças aos treinos intensos de Zander. Não me permiti pensar em nada que não fosse os troncos e pedras de que tinha que desviar. Eu já conhecia a direção e o trajeto pelo qual tínhamos que passar, então só segui em frente. Até chegar. Quando avistei o lago e finalmente tomei coragem pra olhar para trás, quase perdi o fôlego já entrecortado. Concentrada demais na parede de terra que literalmente nos seguia , tropecei em uma das raízes e me estatelei no chão. Minhas mãos eram inúteis como apoio amarradas, então meu rosto bateu diretamente contra a terra. Assim que Jasper percebeu, me ajudou a levantar e voltamos a correr. Ele encheu o cálice e me mandou correr sem olhar para trás, então mesmo sem entender como ele faria para não derramar toda a água em uma corrida, obedeci, a parede de pedra se abrindo diante de mim e formando uma nova defesa, na qual eu podia ver meu caminho mas nada me atingia. Com medo de uma segunda queda, não pisei olhar para trás até que estivéssemos de volta aos jardins iniciais, meu peito queimando e cada músculo do meu corpo pedindo socorro. Um alívio me percorreu quando percebi que não havia uma mancha de tinta sequer em meu corpo, a parede que Jasper ergueu nos ajudou com isso, mas o cálice... me virei assustada para Jasper, esperando uma cara de decepção ou derrota. Mas... o cálice estava cheio e transbordando em suas mãos. Não caíra uma gota sequer, mesmo em meio a nossa corrida frenética.

— Muito bem, sua pontuação foi anotada Jasper. Lúcios, você é o próximo.

Lutei para controlar o fôlego, cada respiração quase me arrancando um gemido de exaustão. A prova era para eles? Pois estavam bem demais comparado a mim. Lúcios retirou os sapatos e surpreendentemente não me tocou, apenas indicou a floresta com a cabeça , o ponto onde partiríamos. Eu o segui desconfiada até que ele parasse já não a vista, se ajoelhando à minha frente.

— O que está fazendo?

Recuei um passo, mas ele não pareceu irritado. Apenas me olhou calmamente e disse:

— Você está cansada. Provavelmente como estaria depois de uma guerra ou uma fuga. Pra mim isso não é uma brincadeira, é uma simulação de uma situação real. Então como seu pretendente vou usar o que tenho para te proteger, inclusive você. Me deixe tirar seus sapatos, reconhecemos a floresta melhor dessa forma.

Voltei um passo em sua direção, puxando o vestido enquanto estendia um dos pés para ele, depois o outro. Concentrado, ele retirou minhas sapatilhas já sujas de lama, e as apoiou cuidadosamente contra um tronco de árvore, que marcou com sua faca. Então ele apenas começou a andar. Ainda irritada eu o segui floresta a dentro, mantendo com ele uma caminhada lenta e cuidadosa.

— Não sabemos qual é o método de cada um sabia? Só sabemos que funcionou depois que você chega .

Senti partes do tecido de meu vestido se colarem ao meu corpo devido ao suor que eu emanava pelas corridas. Quase me desesperei por um banho, mas aquela parte aventureira de mim me permitiu ignorar esse pensamento.

— E você quis ser o último por que?

Lúcios apoiou as mãos na cintura parando para analisar o lugar. Depois se abaixou, fazendo sinal para que eu o imitasse. Meu plano inicial era de fato atrapalha-lo, me colocar na frente das balas de tinta e torcer para que alguma acertasse minha cabeça. Mas eu me agachei. E observei enquanto ele pousava a mão sobre a terra e... sentia ela. Suas narinas se dilataram, os olhos fechados em concentração. Naquele momento, tive que admitir que ele era sim muito bonito. Lindo até... perfeito. Por fora. Sardas salpicavam suas bochechas, como uma obra de arte detalhadamente pintada. Como eu não havia visto esse detalhe antes? Suas sobrancelhas grossas quase se tocavam de concentração, a garganta subia e descia conforme ele engolia em seco. Ele mordia o lábio inferior, lábios cheios e vivos que pareciam tão experientes...

— Queria ser o último porque o último é sempre o melhor.

Lúcios disse abrindo os olhos, me pegando no flagra enquanto o encarava com... a boca aberta! A fechei em um estalo e me levantei para voltar a andar. Mas para a minha surpresa, ele não caçoou de mim, ou debochou. Ele apenas explicou o que faríamos:

— Tem um caminho com menos soldados, mas eles estão mas árvores então vai ser difícil de desviar.

— Então o que faremos?

Nem acreditei em minha própria boca quando a frase saiu. Eu iria mesmo ajudá-lo? Bom... de certa forma isso se tratava da minha segurança real.  E ele não parecia inclinado a correr, então talvez valesse a pena escuta-lo e segui-lo realmente. Lúcios me pegou pelos ombros e começamos a andar. Eu não entendia o porque de estarmos tão devagar, mas cedi ao seu ritmo. Passadas largas e calmas, a manhã já tinha partido, dado espaço ao fim da tarde. Eu mal percebi quando o sol estava no meio do céu, foi um susto perceber que a noite estava próxima. Quase não ouvi nossos passos conforme avançávamos pela trilha, lugar que todos os outros procuraram evitar. Os guardas apareceram, e eu quase me virei para protestar, mas parei quando percebi que... eles não nos viam. Continuavam suas conversas banais entre gargalhadas e provocações, alheios a nossa presença ali. Caminhamos diretamente até o lago escondido pelos arbustos, quando finalmente Lúcios soltou meus ombros após agachar.

— O que foi isso?

Agachei ao seu lado conforme ele enchia o cálice e o estendia a mim. Eu o segurei com as duas mãos esperando sua resposta sussurrada.

— Eu usei meus poderes. Vamos voltar agora, não faça barulho está bem?

Seu olhar estava tão sério que tive que concordar. Ele não corria como um maluco, ele foi o único que não correu. Ele não estava preocupado com os pontos que perderia por chegar mais tarde, mas sim com a minha segurança. Então concordei enquanto nos levantávamos, suas mãos já de volta aos meus ombros. Segurei o cálice com força, equilibrando o melhor que pude. Um frio ainda atingiu meu estômago quando ultrapassamos novamente os guardas em direção ao nosso destino, sempre cuidadosos com o chão e com os ruídos. Quando finalmente chegamos, chocando todos ao perceberem que minha cara de cansaço havia sumido, entreguei a taça para a rainha, e me peguei imaginando se aquele monstro cruel não escondia um coração em seu interior. Que interessante seria.

O herdeiro negroOnde histórias criam vida. Descubra agora